Por que pautamos a pedofilia no 8 de março?

Sangra Coletiva
5 min readAug 1, 2020

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Coletiva Sangra

No dia 8 de março de 2020, a equipe da Sangra Coletiva foi às ruas de São Paulo para somar as vozes das sobreviventes de pedofilia à luta das mulheres trabalhadoras. É muito importante que o estupro de meninas seja pautado no Dia Internacional das Mulheres porque o trabalho reprodutivo forçado das meninas foi o responsável pela explosão demográfica do Brasil no século passado e essa história ainda não foi contada como deveria. As instituições governamentais e não-governamentais têm tratado a temática da pedofilia de uma forma despolitizada, liberal, atribuindo a “vontade de estuprar crianças” a um transtorno mental ou até mesmo a uma orientação sexual, como se essa “vontade” fosse originada e encerrada no campo de uma “individualidade doente” ou de um ”fetiche sexual individual” paralelo à norma heterossexual quando, na verdade, essa “vontade” foi o motor da modernização e industrialização do país, não paralelo, mas intrínseco à heteronormatividade. Ao analisar a história de nossas avós e bisavós, chegamos à constatação de que grande parte delas, senão a maioria, foi engravidada menina, criança ou adolescente, em meio à modernização do Brasil, que ocorreu justamente no momento em que as fronteiras do país foram abertas a imigrantes brancos pelo então ditador Getúlio Vargas, pois acreditava-se na eugenia como modelo de civilização e progresso para a nação. Isso significa que meninas – crianças e adolescentes – eram estupradas, engravidadas e tomadas como escravas domésticas como uma forma legítima de formação de família. Uma prática que era inclusive legalmente amparada, pois no artigo 107 do Código Penal de 1940, a punibilidade do crime de estupro era extinta caso o estuprador se casasse com a vítima.

Esse pacto ainda pouco debatido no movimento de emancipação das mulheres, pacto este entre os homens e o Estado, foi por muito tempo chamado de “bons costumes”, mas nunca passou de pátrio poder, ou seja, de poder coletivo de propriedade dos homens sobre as mulheres instituído pelo governo. O “bom costume”, controle moral para a fêmea humana e permissividade moral para o macho humano, significa a manutenção do sexo feminino como propriedade de seu pai ou seu marido. Um dos lados mais sombrios do pacto do pátrio poder instituiu o casamento infantil no Brasil como uma política no início do século XX, configurando a hierarquia sexual e coletiva de um sexo junto do Estado sobre o outro. Tornou-se um costume o sequestro e gravidez forçada de meninas, e assim gerações praticamente inteiras foram originadas. Meninas indígenas e negras foram estupradas por imigrantes europeus ou descendentes destes, forçando a miscigenação e o etnocídio. Meninas brancas foram estupradas também por homens brancos como uma forma de aumentar o número da população branca. Quando afirmamos que o homem branco estuprou todas as etnias de meninas e mulheres no Brasil, não queremos com isso afirmar que homens indígenas e negros não praticaram essa violência ao longo de todo esse tempo: queremos dar visibilidade ao fato de que a única etnia que estuprou como forma de exercer supremacia sobre as demais foi a caucasiana, e que esse é um traço fundamental e invisibilizado da eugenia. A política baseada no estupro e gravidez forçada de meninas indígenas, negras e brancas gerou mais mão-de-obra doméstica para as famílias e mão-de-obra também para as fábricas, possibilitando que a família heterossexual gerasse, por meio da exploração doméstica feminina, tempo livre para que o homem produzisse economicamente enquanto a mulher era laboralmente e sexualmente escravizada. Essa hierarquia da exploração do homem pelo dono da indústria e da menina pelo homem - sem nos esquecer também da exploração da mulher indígena e negra ou branca da classe trabalhadora pela mulher branca herdeira – promoveu, portanto, o enriquecimento dos donos das indústrias, a geração do PIB e a concentração de renda, propriedades e terras nas mãos da elite branca e masculina.

Nesse sentido, nós, da Sangra Coletiva, compreendemos a necessidade de fortalecer a perspectiva original das filhas, netas e bisnetas das sobreviventes, definindo a pedofilia como projeto político de nação. Nós nos posicionamos de forma contrária à lógica liberal, que analisa o problema do ponto de vista individual, dando lugar e forma a uma análise radical, isto é, uma análise que vai à raiz do problema, entendendo que a pedofilia, longe de ser uma prática originada e encerrada no campo da individualidade, é uma prática coletiva que sustenta o poder de propriedade dos homens e do Estado sobre as mulheres da forma mais covarde possível: mirando nos úteros infantis, pois meninas são muito mais facilmente manipuladas e domesticadas do que mulheres adultas. O Brasil é o 4° país que mais casa meninas no mundo não porque sua metade masculina seja doente ou "tarada" e sim porque ela é legalmente amparada em seu projeto de dominação reprodutiva e étnica.

O trabalho doméstico forçado, como já sabemos, gera uma economia de aproximadamente 11 trilhões de dólares por ano: esse número é maior do que o altíssimo lucro anual do mercado de tecnologia. Meninas e mulheres é que sustentam esse lucro e todos os outros. A desvalorização do trabalho doméstico, como se a cozinha, a higiene e os cuidados – majoritariamente realizado por meninas e mulheres – fossem ocupações inferiores que precisam ser realizadas “por amor”, sem transação financeira, tem relação direta com a exploração da mão-de-obra feminina e a produção de tempo livre para garantir ao homem a ocupação dos mais altos cargos empresariais. A pedofilia, por sua vez, é um projeto político de controle reprodutivo e étnico para realizar a manutenção intergeracional da vulnerabilização feminina por meio da naturalização da exploração das meninas, que crescem e se tornam mulheres dessensibilizadas para a própria realidade. Nós, da Sangra Coletiva, queremos disseminar entre as mulheres trabalhadoras a visibilidade dessa história de controle reprodutivo e étnico como origem de toda mão-de-obra disponível no Brasil. Uma história que tem sido apagada não só pela extrema-direita, mas também pelo liberalismo da falsa esquerda, como se a hierarquia sexual não fosse uma política de extrema-direita que persiste ainda nos dias de hoje.

A hierarquia sexual persiste e ela continua configurada pelo Estado. A ideologia do essencialismo sexual biológico continua ensinando ao sexo feminino que o destino de parir e de obedecer à supremacia masculina pertence às meninas. A passividade, servilidade e maternidade obrigatória ainda são compreendidas como um destino biológico das nascidas meninas. A propriedade privada segue considerada como um direito biológico do homem branco, que raramente é punido por crimes sexuais, visto que meninas e mulheres são consideradas como propriedades masculinas. A hierarquia sexual persiste e o projeto de controle reprodutivo existe. Prova disso é que o Brasil tem política pública para proteger pedófilos, como a Lei da Alienação Parental, mas não tem política pública para dar assistência a vítimas de estupro intrafamiliar, de casamento infantil, prostituição infantil e agora da mais nova e cada dia mais crescente forma de exploração sexual infantil, que é a pornografia infantil. Por isso, pautar a pedofilia no dia 8 de março e fazê-la pauta raiz em todo o movimento de emancipação feminina é uma necessidade cada vez mais urgente para qualquer mulher que queira investir de forma incisiva na verdadeira liberdade de nossa classe sexual.

Texto: Natacha Orestes | @brasilcontrasap | #mulherartistaresista

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