Por que decidimos criar uma Ideia Legislativa pela revogação da Lei da Alienação Parental?

Sangra Coletiva
9 min readFeb 16, 2021

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A luta pela revogação da Lei da Alienação Parental não é nova. Desde a sua aprovação, mulheres sobreviventes de violência doméstica e mães de crianças vítimas de estupro paterno têm enfrentado, além de seus agressores diretos, um sistema altamente organizado de defesa de violadores que conseguiu se infiltrar nos órgãos públicos por meio da doutrina que tornou possível a Lei da Alienação Parental. Existe um conceito dentro da economia que é nomeado como “marketing repugnante”: é quando se reconhece a existência de determinada demanda por serviços, mas a emergência da legitimação desse mercado é considerada antiética. Alienação Parental é expressão desse marketing: é um nicho de mercado criado a partir da demanda de agressores de mulheres e crianças por defesa legal.

Antes da Lei da Alienação Parental, muitas mães precisavam lutar para proteger a si mesmas e suas crianças de maridos ou pais criminosos. A partir da aprovação da LAP, essas mães passaram a enfrentar não somente os ex-maridos e pais de seus filhos, mas principalmente uma cadeia de profissionais do Direito e da Psicologia Forense treinados para defender criminosos, para culpar as mulheres pelas violências sofridas e para deslegitimar narrativas infantis. O treinamento, traduzido por ONGs que têm como eixo existencial a de defesa dos Direitos dos Homens, transformado em Projeto de Lei pela bancada evangélica e aprovado até mesmo pela esquerda, é o legado do médico militar estadunidense Richard Gardner. Gardner foi precursor desse nicho de mercado nos Estados Unidos e sua metodologia militar se espalhou por diversos países do mundo todo.

Sete anos após a aprovação da norma legislativa, dada a potência da força política do movimento materno, a narrativa das mães começou a se tornar impossível de ser completamente ignorada. Com o passar do tempo, as vítimas da Lei da Alienação Parental, quebrando o silêncio e saindo do isolamento, foram se encontrando e se ouvindo. Esse encontro possibilitou o início de uma luta mais organizada e politizada, com foco em pressionar o judiciário a enxergar o que estava acontecendo e fazer com que deputados e senadores abrissem seus gabinetes para conhecerem o massacre contra mães e crianças permitido pelo Estado. . No dia 12 de setembro de 2017, o coletivo de Proteção À Infância Voz Materna (RS), fundado e coordenado por Sibele Lemos e Alessandra Andrade, realizou, juntamente com o Coletivo Mães na Luta (SP), a 12S, uma manifestação que já ocorria na Espanha. O protesto ocorreu em frente ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e do Tribunal de Justiça de São Paulo no dia 12 às 12h, tornando possível a visibilidade da mobilização materna que já ocorria longe dos olhos da imprensa. No Rio Grande do Sul, a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa foi procurada por uma grande quantidade de mães para denunciar reversões de guarda diante de denúncias de abuso paterno. A sociedade passou a ter mais conhecimento sobre isso a partir da 12S, que ocorreu novamente nos anos seguintes, tendo sido um ato virtual no ano de 2020 devido à pandemia.

PROJETOS DE LEI — REVOGAÇÃO VIA CONGRESSO NACIONAL — PODER LEGISLATIVO

Ao notar que mães estavam se organizando frente a um Estado que representa a Lei do Pai, com todo o peso e perigo do que significa a autonomia política de um movimento materno contra a violência doméstica e contra a violação sexual de crianças, Magno Malta, então senador representante da bancada evangélica que defendia a criminalização da alienação parental — cuja secretária na época era ninguém mais, ninguém menos do que a Ministra Damares -, recuou e “virou a casaca”, mostrando-se favorável ao movimento materno, reposicionando-se por estratégica conveniência frente à nova realidade: a de que mães não seriam mais ignoradas. Em agosto de 2017, Malta, que defendia que “crimes de alienação parental” deveriam ser averiguados e punidos criminalmente, criou a CPI dos Maus Tratos, a princípio para averiguar denúncias de incentivo a automutilação e ao suicídio dirigido a crianças e adolescentes em ambiente escolar e virtual. Em dezembro de 2018, após inúmeras polêmicas criadas pelo senador, dentre elas a convocação e tortura de um preso (acusado de estuprar quatro crianças) durante uma audiência pública da CPI dos Maus Tratos, a comissão de inquérito foi finalizada sem nenhum tipo de indiciamento, mas com proposta de mais de 33 projetos de lei, entre eles o PLS 498/2018, com a seguinte explicação: Revoga a Lei da Alienação Parental (Lei 12.318/2010), por considerar que tem propiciado o desvirtuamento do propósito protetivo da criança ou adolescente, submetendo-os a abusadores.

Desde a criação dessa CPI, a estratégia dos representantes políticos de tratar a demanda das mães pela revogação da Lei da Alienação Parental como se essa demanda não existisse foi alterada para a estratégia de dar um leve sabor de atenção às mães com o objetivo de conter a legítima frustração política desse movimento e ganhar tempo para a criação de um jeito de iludi-lo de forma sofisticada. Dito e feito: a senadora Leila do Vôlei, designada relatora do PLS 498/2018, atendendo à demanda liberal do mercado de defesa de agressores de mulheres e crianças e não à demanda radical pela proteção à infância e à maternidade, apresentou, em dezembro de 2019, uma proposta de alteração da Lei da Alienação Parental, tendo rejeitado sua completa revogação.

O novo discurso de defesa da manutenção da Lei da Alienação Parental, a partir desse momento, passou a ser o de que havia brechas na norma, e que essas brechas possibilitavam a manipulação do judiciário para beneficiar violadores. Não é esta a narrativa defendida pelo movimento materno à frente da luta pela revogação da Lei da Alienação Parental. A análise acerca da norma legislativa pelas mães não é restrita ao texto — aparentemente neutro — que corporifica a lei: o foco dessa análise é radical, não no sentido vulgar dessa palavra, mas em seu sentido etimológico: radical, do latim radix, aquilo que vem da raiz. O movimento materno analisa a raiz da Lei da Alienação Parental, que é a doutrina gardenista, o que é muito mais profundo e complexo do que analisar simplesmente o texto legal. Aliás, mencionar a doutrina gardenista é evitado entre deputados, deputadas, senadores, senadoras. O Estado, atendendo às demandas da classe masculina e de um mercado antiético de profissionais de Direito e Psicologia Forense, continua tendo por objetivo negar e ocultar a raiz podre da Lei da Alienação Parental.

Valendo-se dessa disputa narrativa entre o Estado gardenista e o agora expressivo — e em crescente expansão — movimento materno, ainda em dezembro de 2019, foi apresentado um novo PL de revogação da Lei da Alienação Parental, dessa vez encabeçado pela deputada Iracema Portela. Trata-se do PL 6371/2019, cuja última ação legislativa foi seu recebimento pela Comissão de Seguridade Social e Família no dia 17 de dezembro de 2019. Embora a justificativa para a revogação tenha sido muito mais próxima da análise proposta pelo movimento materno, denunciando a ausência de cientificidade da doutrina e o desrespeito ao ECA e à Constituição por ser uma lei que permite acesso de abusadores a crianças e a discriminação do sexo feminino, a atuação de Iracema Portela limitou-se a apresentar o projeto por escrito na Câmara dos Deputados sem, de fato, colocar seu mandato, equipe de comunicação e capacidade de articulação política para trabalhar por sua aprovação.

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE — IMPUGNAÇÃO VIA PODER JUDICIÁRIO

Um pouco antes da apresentação do novo PL de revogação, em novembro de 2019, a Associação de Advogadas pela Igualdade de Gênero (AAIG) ajuizou, no Supremo Tribunal Federal, a Ação Direta de Inconstitucionalidade 6273, com pedido de medida cautelar contra a Lei da Alienação Parental. A argumentação técnica da entidade representada por sua presidenta, a advogada Renata do Amaral Gonçalves, foi impecável. Augusto Aras, Procurador Geral da República — como representante do presidente Jair Bolsonaro — relatou a posição do Chefe do Poder Executivo Federal como contrária à Ação Direta de Inconstitucionalidade. Ou seja, Bolsonaro manifestou-se favorável à norma, pela constitucionalidade formal e material da Lei da Alienação Parental. Igualmente, o Procurador Geral da República relatou a posição da Câmara dos Deputados e do Senado Federal alinhadas à posição do presidente. Além disso, Augusto Aras afirmou haver um viés “ideológico de gênero” na defesa da abolição da norma, posicionando-se, portanto, favorável à manutenção desta. A ADI ainda tramita no Superior Tribunal Federal e sua relatoria está nas mãos da Ministra Rosa Weber.

IDEIA LEGISLATIVA — PROTAGONISMO POPULAR VIA SENADO FEDERAL

Dado que o Congresso Nacional não dá sinais favoráveis à maternidade e à infância, primeiro ignorando completamente a demanda das mães, como se mães não pudessem ser considerados sujeitos políticos, depois intentando conduzir — sem sucesso — o movimento materno ao erro de acreditar que o problema com a Lei da Alienação Parental é relacionado à interpretação da norma e não à norma em si e até mesmo transformando essa disputa mães x Estado em jogo de marketing narrativo, sem sustentação em ações concretas como trabalho de comunicação e articulação política, a Sangra Coletiva decidiu pela estratégia de ocupar o Poder Legislativo por meio do site e-cidadania, que recebe Ideias Legislativas de cidadãs e cidadãos brasileiros. Na redação dessa ideia, decidimos mencionar o ainda pouco debatido caráter militar estadunidense da doutrina gardenista. Um golpe que, infiltrado no Poder Legislativo, acabou por militarizar as Varas de Família, promovendo, assim, uma escolta e proteção institucionalizada de pedófilos e agressores de mulheres, aparelhando os órgãos públicos para defender os interesses dos violadores sexuais e separar mães de crianças. Uma política muito comum de ser aplicada a mães e crianças imigrantes sul-americanas nos Estados Unidos.

A proposta de criar essa Idea Legislativa vem da consciência de que as narrativas de defesa radical da maternidade e da infância no Brasil têm sido abafadas de várias maneiras nas arenas políticas. Mães e crianças não têm tido acesso à tal da “representatividade” que é tão explorada pelo marketing hoje em dia. Pautas identitárias associadas ao feminismo, inseridas nas arenas políticas do Estado, revelam uma profunda desconexão com as demandas de mulheres sobreviventes de violência doméstica e crianças sobreviventes de estupro intrafamiliar. Até mesmo o feminismo, luta política das mulheres pelo desmantelamento da exploração dos corpos femininos, tem sido colocado a serviço exclusivo da mobilização da — necessária — luta de classes e não do combate à violência sexual intrafamiliar. O que acontece dentro dos lares continua sendo tratado como assunto privado, briga de casal, não questão política que necessita ser amplamente debatida nas arenas públicas. Mães e crianças não contam com nenhuma parlamentar comprometida com o combate à violência doméstica e sexual. Por isso, é importante que busquemos representar a nós mesmas por todos os meios possíveis. A criação dessa Ideia Legislativa vem para mostrar que somos sim o sexo forte, que somos sim capazes de autonomia e lealdade política umas com as outras. A Ideia Legislativa foi criada para passarmos os nossos recados: não aceitamos esse golpe parlamentar que militarizou das Varas de Família! Não estamos sozinhas! Não somos poucas! Mesmo que o Estado tenha por tradição tratar mães como um grupo sem capacidade política cuja voz deva se limitar aos ambientes domésticos. O que mães e sobreviventes sentem de imediato como desprezo, desvalorização e descaracterização política por parte do Estado e de movimentos que anseiam pela desmobilização da classe feminina pode e deve ser interpretado como seu contrário. É o medo que agressores domésticos, estupradores de crianças e o mercado antiético que lucra com a defesa dos violadores têm das narrativas de resistência de mães e sobreviventes de incesto. É o medo da valorização que essas narrativas podem alcançar. E, principalmente, medo de que a classe feminina milenarmente oprimida pela capacidade de gestar, parir e amamentar, compreenda que a Lei do Pai pode ser antiga e ter ares de indestrutível, mas ela não é biologicamente determinada, tampouco divinamente herdada dos homens por Deus, portanto pode ser fragilizada e desmantelada a partir da potência do encontro entre mulheres-mães e mulheres-sobreviventes capazes de enxergar umas às outras como sujeitos políticos que compartilham os mesmos objetivos. Por mais diferentes e até mesmo divergentes que sejam entre si.

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Sobreviventes sangram. Sobreviventes se curam juntas.

Natacha Orestes | integrante da Sangra Coletiva

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