Por que a Sangra Coletiva tem uma perspectiva lésbica radical?
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Existe uma compreensão dentro do movimento feminista heterocentrado acerca do lesbianismo como um recorte, ou, ainda, enquanto uma questão identitária e, portanto, dispensável no que se pauta revolução. Todavia, isso apenas demonstra uma arrogância heterossexual. Até porque a insubmissão feminina não é um detalhe, pelo contrário, é crucial para o movimento de libertação das mulheres, e o que define melhor a lésbica que a insubordinação? Pautar a lesbianidade no movimento feminista é elevar as relações entre mulheres a um nível revolucionário, enquanto lesbianizar o feminismo é dar espaço para aquelas que desafiam diretamente o patriarcado, vetando o acesso masculino contínuo aos seus corpos e mentes, criando espaços livres do pensamento heterossexual, seguros para mulheres. Dito isso, podemos estar convictas de que, sem lésbicas, não há revolução, considerando que a libertação das mulheres só é possível se houver um desmonte do regime político heterossexual.
Antes de mais nada, é importante contextualizar que a ciência política define “regime político’’ como um conjunto de instituições por meio das quais o Estado se organiza para exercer seu poder sobre a sociedade. É justamente por esse motivo que a heterossexualidade deve ser nomeada como tal. Seria um equívoco eufemista apontá-la apenas como uma estrutura isolada das demais que compõem nossa sociedade, tendo em vista que sua normativa se impõe a cada uma das instituições políticas e culturais que conhecemos. A escritora Monique Witting foi pioneira em estabelecer essa conceituação:
Descrevo a heterossexualidade não como uma instituição, mas como um regime político baseado na submissão e apropriação das mulheres. Em situações desesperadoras, como servas e escravas, as mulheres podem “escolher” se tornarem fugitivas e tentar escapar de sua classe ou grupo (como fazem as lésbicas) e / ou renegociar diariamente, termo a termo, o contrato social. Não há como escapar (porque não há território, não há outra margem do Mississippi, não há Palestina e nem Libéria para as mulheres). A única coisa que você pode fazer é resistir por conta própria como uma fugitiva, uma escrava em fuga, como uma lésbica. Você pode pensar que meu ponto de vista é muito rude, e não estou surpresa, considerando o número de séculos de pensamento que tem sido contra ele. Primeiro você tem que sair do caminho tradicional da política, filosofia, antropologia, história, “culturas”, para entender o que realmente está acontecendo. Teríamos então que lidar com o magnífico brinquedo filosófico da dialética, que não nos permite conceber a oposição de homens e mulheres em termos de luta de classes. Devemos compreender que não há nada de eterno neste conflito e que para superá-lo devemos destruir política, filosófica e simbolicamente as categorias de “homens” e “mulheres”. A dialética nos falhou. É por isso que a compreensão do que é “materialismo” e materialidade nos corresponde. (WITTIG, 2006, p. 15–16)
É necessário evidenciar que quando Wittig fala em destruir as categorias do sexo, ou seja, as categorias “homem” e “mulher”, ela está se referindo aos papéis sexuais, mais conhecidos, na contemporaneidade, como “papéis de gênero”. Já que na época destes escritos, o conceito de “gênero” — criado nos Estados Unidos — era mais forte nos EUA e na Inglaterra. Além disso, lhe parecia impreciso para compreender a dimensão dos papéis sexuais, como ela explicou em suas próprias palavras: “Com ‘A categoria de sexo’ eu queria mostrar ‘sexo’ como uma categoria política. A palavra ‘gênero’, como usada na Inglaterra e nos Estados Unidos, parecia muito imprecisa para mim.” (WITTIG, p. 18)
É partindo da compreensão de que a heterossexualidade no patriarcado se trata de um regime político, que Janice Raymond propõe que vivemos em uma “heterorrealidade”. Ou seja, em um mundo no qual a existência feminina é mediada de acordo com os interesses masculinos devido à influência generalizada do regime heterossexual em cada aspecto da nossa cultura e sociedade.
Heterorrealidade é a percepção de um mundo no qual a mulher existe sempre em relação ao homem (…), descreve uma situação criada pelas heterorrelações (…) que expressam a ampla gama de comunicações afetivas, sociais, políticas, econômicas, entre homens e mulheres (…) decretadas pelos homens. (Raymond, 1986).
Dessa forma, relações entre mulheres são propositalmente destruídas e definidas pelo homem, ou pela falta dele. Nessa lógica, mulheres juntas são mulheres sozinhas. Mulheres têm sido impossibilitadas de criarem vínculos significativos entre si, de se articularem e de se amarem. Não à toa, a rivalidade feminina é incentivada assim que a menina entra na adolescência, porque essa é a forma ideal de fazer com que ela enxergue suas iguais como concorrentes em sua busca pela aprovação masculina. A construção de relações ginoafetivas firmes nessa época da vida seria uma tragédia para o patriarcado, então é preciso que estejamos afastadas desde cedo, nos tornando, assim, passíveis da subordinação perante à heterorrealidade. O termo ginoafeto, por sua vez, também trazido por Raymond, se refere à construção de relações afetivas — não necessariamente românticas ou eróticas — entre mulheres. Desse modo, o fortalecimento dos ginoafetos é necessário para que seja recuperada a nossa verdadeira integridade, por meio do resgate da humanidade feminina como central nas relações entre mulheres.
Nesse sentido, nós da Sangra Coletiva compreendemos o lesbianismo como uma perspectiva crucial para orientar nossas posições e objetivos. Pois, como pontuamos, o regime político heterrossexual é o que possibilita o patriarcado, estruturando uma subordinação política a níveis privados a partir da ligação emocional. Logo, é preciso compreender e contestar diretamente a compulsoriedade presente nas relações heterossexuais. Como Adrienne Rich já elucidou, a heterossexualidade tem sido compulsória à classe feminina, além de crucial para possibilitar a exploração dos corpos femininos:
A heterossexualidade compulsória simplifica a tarefa do proxeneta e do cafetão nos círculos e “centros eróticos” mundiais da prostituição, enquanto, na privacidade da vida familiar, leva as filhas a “aceitarem” o incesto-estupro de seu pai, a mãe a negar que isso esteja acontecendo, a esposa agredida a continuar vivendo com seu marido abusivo. “Amizade ou amor” são a principal tática do proxeneta, cujo trabalho é dirigir a fugitiva ou a jovem confusa para o cafetão para dar algum tempero. A ideologia do romance heterossexual, irradiada na jovem desde sua mais tenra infância por meio dos contos de fada, da televisão, do cinema, da propaganda, das canções populares e da pompa dos casamentos, é um instrumento já pronto nas mãos do proxeneta, que não hesita mesmo em usá-los, tal como Barry registra. Em grande medida, a doutrinação prematura das mulheres pelo “amor” como emoção pode ser um conceito ocidental, mas uma ideologia mais universal subentende a primazia e o caráter incontrolável da pulsão sexual masculina. (RICH, 2010, p. 31)
Rich também elucida, por meio de uma citação de Barry, o que significa na vida das mulheres essa identificação com homens:
O efeito da identificação com os homens significa: ‘internalizar os valores do colonizador e participar ativamente na realização da colonização do eu e de seu sexo. A identificação com os homens é o ato por meio do qual as mulheres colocam os homens acima das mulheres, inclusive de si mesmas, em credibilidade, status e importância na maioria das situações, desconsiderando a qualidade comparativa que as mulheres possam trazer para a situação […]. A interação com as mulheres é vista como uma forma menor de se relacionar em todos os níveis. (BARRY, 1979, apud. RICH, 2010, p. 33).
Dessa forma, essa identificação das mulheres com os homens, que é mediada pela heterorrealidade proposta por Raymond, tem vulnerabilizado meninas e mulheres ao aprisioná-las em uma relação compulsória com seu opressor:
Ao considerarmos o desenvolvimento sexual obrigatório, que entende-se como normal na população masculina, e considerando o número de homens que são cafetões, proxenetas, membros de gangues de escravidão, oficiais corruptos que participam deste tráfico, proprietários e empregadores de bordéis, estalagens e de locais de entretenimento, provedores de pornografia, associados com prostituição, espancadores de esposas, molestadores de crianças, perpetradores de incesto, clientes de prostituição e estupradores, não se pode apenas ficar chocado, por um momento, pela enorme população masculina que está engajada na escravidão sexual feminina. O grande número de homens engajados em tais práticas deveria ser a causa de uma declaração de emergência internacional, uma crise de violência sexual. Mas o que deveria ser a causa para alarme é, ao invés disso, aceito como um intercurso sexual normal. (BARRY, 1979, apud. RICH, 2010, p. 33).
As estruturas de opressão da sociedade são conservadas através do silêncio dos segmentos sociais que mantêm o status quo como alicerces de dominação. Os sistemas políticos são baseados nesse silenciamento profundo e, no caso da heterossexualidade enquanto um regime, mulheres são caladas pelo pressuposto naturalizante da ordem vigente. Os papéis sexuais, sistematicamente impostos como traços de personalidade inatos ou consequência imutável da realidade material, são incentivados como uma maneira de silenciar mulheres contra a manifestação do que define e propaga sua opressão (Dworkin, 1995).
Embora Dworkin elucide que, de fato, tenhamos avançado muito na nomeação das violências milenares que sofremos, quebrando esse silêncio e denunciando a forma como a violência masculina atua em sua forma mais perversa — por trás dos laços que mantemos diretamente com homens — ainda não está sendo feito o máximo por essas mulheres. Diante do fato de que não são os estranhos em ambientes externos que oferecem maior perigo às mulheres, mas homens conhecidos dentro de suas próprias casas, como poderíamos não pautar a compulsoriedade do sistema que nos prende a um cativeiro emocional e político? A lesbianidade, nesse sentido, irrompe como uma estratégia de ruptura com esse sistema, sendo a base da luta feminista. Assim, é imprescindível desconstruir a ideia de que a lesbianidade apresenta-se apenas como uma alternativa à heterossexualidade; uma vez que esta é um regime político de dominação, escolher e centralizar mulheres dentro de esferas privadas e públicas vai muito além de trocas íntimas e sexuais, diferente de como outras sexualidades são concebidas, como destaca Sheila Jeffreys:
Aqui, “bissexualidade” consiste em meros atos sexuais. Isso é significativamente diferente do lesbianismo do feminismo lésbico, que não é visto simples ou mesmo necessariamente como atos sexuais, incluindo um amor e valorização de mulheres, uma comunidade de amizades e apoio, a criação de uma história e cultura e uma forma de resistência política à dominação masculina [Faderman,1981; Lesbian History Group, 1989]. As noções de amor e relações humanas envolvidas em muitas práticas bissexuais são extremamente empobrecidas. (JEFFREYS, 1999)
Apesar de seu artigo dispor das pautas levantadas pela política bissexual, proclamada erroneamente como uma forma revolucionária de se relacionar, adicionamos aqui que relações com homens, no geral, são intrinsecamente empobrecidas por se embasarem numa desigualdade de poder estrutural entre homens e mulheres. Não existe abordagem neutra da heterossexualidade, longe do valor político de controle reprodutivo que esse regime propagou milenarmente sobre mentes e corpos femininos. Assim, a tentativa de emancipar a mulher sem pautar e romper com a mais profunda raiz da opressão é paliativa e superficial. É evidente que nomear violências sem traçar uma verdadeira saída para elas é um esforço em vão, e é por isso que lésbicas seguem a difundir o lesbianismo como uma real possibilidade a todas as mulheres, por ser a única prática que destitui a supremacia masculina nos âmbitos privados e, inerentemente, políticos.
Em oposição ao destino social de servidão aos homens, intrínseco à devoção praticada por mulheres heterossexualizadas a estes, está o lesbianismo. Toda mulher carrega consigo o potencial lesbiano necessário para romper com a heterossexualidade. Para além do âmbito individual, a lesbianidade representa a união entre mulheres contra a dominação masculina; a partir da superação do ressentimento ocasionado pela construção das relações entre mulheres, será possível atingir a raiz da posição subalterna da classe feminina. A condição de heterossexual, de fato, confere a essas mulheres uma modalidade de privilégio sobre aquelas que não mais estão aliançadas a homens (lê-se lésbicas) e, portanto, não partilham em nenhuma instância do poder masculino, como também não se submetem a homens. O fenômeno de não subordinação, naturalmente, resulta em hostilização por parte dos demais setores da sociedade, inclusive de outras mulheres; em outras palavras, a recusa da mulher lésbica a conceber o homem como prioridade influencia na forma como todas as nossas relações intrapessoais serão articuladas.
Como foi pontuado por Charlotte Bunch, a heterossexualidade se baseia justamente na centralização do homem em detrimento de qualquer outro aspecto ou pessoa, até mesmo da própria subjetividade da mulher, o que culmina no afastamento das mulheres umas das outras. Mulheres heterossexualizadas, ao colocarem homens acima de outras mulheres, enfraquecem o vínculo ginoafetivo, e assim prestam um desserviço à sua classe.
Não é que mulheres heterossexuais sejam más ou não se importem com suas irmãs. Isso é porque a vera essência, definição, e natureza da heterosexualidade é homens em primeiro. Toda mulher experienciou aquela desolação quando sua irmã põe seu homem em primeiro lugar ao final de um confronto: a heterosexualidade demanda que ela o faça. Enquanto mulheres ainda se beneficiarem da heterosexualidade, receber seus privilégios e segurança, elas irão em alguma hora ter de trair suas irmãs, especialmente as irmãs lésbicas que não recebem esses privilégios. (BUNCH, 1972)
Nesse sentido, nos alinhamos à perspectiva lésbica radical porque os objetivos da Sangra Coletiva visam justamente atacar diretamente o regime político heterossexual. Buscamos o aumento da idade núbil de 16 para 18 anos, a fim de extinguir o respaldo legal sobre o casamento infantil; aumento da idade de consentimento de 14 para 18 anos e a revogação da Lei da Alienação Parental, bem como a revogação de outras leis e políticas públicas que protegem pedófilos e estupradores. De modo que busquemos proteger crianças e adolescentes da violência masculina, a qual é exercida por meio da exploração física, psicológica, doméstica e sexual — principalmente — dos corpos de meninas e mulheres para benefício masculino.
A partir desse raciocinio, a Sangra Coletiva tem teorizado sobre a pedofilia como um projeto político fruto da lógica do pátrio poder que permeia a estrutura de nossa sociedade. O termo pátrio poder estava na estava na Constituição brasileira até entrar em vigor o Código Civil no ano de 2002 que o substituiu por “poder familiar”. Entretanto, o pátrio poder é um termo que deriva do direito romano pater potestas: direito absoluto e ilimitado conferido ao pai, considerado chefe da organização familiar, sobre as pessoas escravizadas sob seu domínio, incluindo mãe e seus filhos, e também sobre terras. Nessa perspectiva, a integrante da Coletiva Natacha Orestes teoriza que o pátrio poder é uma ferramenta de análise para pensar a posse dos territórios e posse dos corpos femininos. Então, ainda que tenha ocorrido essa substituição no Código Civil por “poder familiar”, existe em nossa cultura patriarcal o funcionamento do pátrio poder. Sendo ele fruto da concepção patriarcal que tem estabelecido a mulher e seus filhos como propriedades masculinas, como explicou a escritora lésbica radical Adrienne Rich:
Patriarcado é o poder dos pais: um sistema familiar — social, ideológico, político — em que os homens, por força, pressão direta ou através de ritual, tradição, lei e linguagem, costumes, etiqueta, educação e divisão do trabalho, determinam que parte as mulheres devem ou não devem jogar, em que a fêmea está em todos os lugares submissa ao macho. (1976)
A análise social através da perspectiva do pátrio poder é fundamental para entender a formação da cultura da pedofilia, uma vez que esta é construída dentro da norma heterossexual, a fim de preparar meninas para cumprir com o seu papel reprodutivo. Nesse sentido, como já foi elucidado por Andrea Dworkin, o incesto é um campo de treinamento para introduzi-las à heterossexualização. De modo que aprendam justamente esse papel de serviência perante os homens; aprenda a ser explorada, usada e, mais importante, que fique tão fragilizada ao ponto de se conformar com os abusos que sofre sistematicamente dentro e fora de casa, por meio de relações compulsórias com outros homens. Assim, compreendemos que a pedofilia se trata de um projeto político de controle reprodutivo, porque em nossa sociedade existe uma cultura que afirma o direito do pai sobre o corpo da filha. Quem pode tê-lo e transferi-lo a outro homem. O que leva o pai a se sentir no direito de abusar, consumir, comercializar, controlar e prostituir o corpo de suas filhas, vistas como uma propriedade de forma dupla: dentro da dinâmica opressiva entre homens e mulheres e, sob nível familiar, na hierarquia entre pai e filha.
O projeto político pedófilo é um projeto de colonização dos corpos femininos, visto que não é possível colonizar um território sem colonizar os corpos femininos ali presentes, porque para a colonização ser efetiva é necessário controlar os meios reprodutivos femininos e a sexualidade feminina. É possível afirmar isso retomando ao Alvará Régio de 4 de abril de 1775 feito pelo Marquês de Pombal, no qual ele promoveu o casamento entre jovens indígenas e homens brancos com o objetivo de se apropriar mais rapidamente de terras por meio do acesso aos corpos das meninas e mulheres indígenas. Todavia, o projeto eugenista se mantém em curso, como parte do patriarcado capitalista de supremacia branca, assim, ela também analisa a política eugenista do governo Vargas que buscou incentivar a imigração para embranquecer a população às custas dos corpos de meninas e jovens negras e indígenas.
O projeto político pedófilo e colonizatório também se mantém presente por meio da Lei da Alienação Parental (LAP). Uma lei que tem torturado institucionalmente centenas de mães há mais de 10 anos ao arrancar a guarda dos filhos da mãe que ousa denunciar o genitor abusador, e assim, tem condenado mães e crianças a um cativeiro de exploração sexual, psicológica e física. Nesse mês, janeiro de 2021, nós lançamos um vídeo (aqui) que contém os relatos de três mães que foram ameaçadas e injustiçadas pela LAP. O que demonstra o pleno funcionamento do poder pátrio. Ele se mantém presente em nossa cultura e funcionando em nome do projeto político pedófilo, ainda que tenha sido retirado da nossa Constituição.
Nesse sentido, enquanto o corpo da mulher foi o primeiro território a ser colonizado, o corpo da lésbica foi o primeiro a resistir à colonização. Diante de tal subversividade das lésbicas — por necessidade de sobrevivência perante a política dos homens — elas foram e continuam sendo pioneiras na causa das mulheres, ainda que a narrativa histórica controlada pela classe masculina tente intensivamente apagar a cultura lésbica e sua resistência histórica. Como já evidenciou a escritora lésbica Cheryl Clarke:
Ser lésbica em uma cultura tão supremacista misógina, capitalista, racista, homofóbica e imperialista como a dos Estados Unidos é um ato de resistência — uma resistência que deve ser acolhida através do mundo por todas as forças progressistas. Não importa como uma mulher viva seu lesbianismo — no armário, na legislatura ou na rêcamara. Ela se rebelou contra sua prostituição ao amo escravista, que corresponde à fêmea heterosexual que depende do homem. Essa rebelião é um negócio perigoso no patriarcado. Os homens de todos os níveis de privilégio, de todas as classes e cores, possuem o poder de atuar legal, moral e/ou violentamente quando não conseguem colonizar as mulheres. Quando não conseguem limitar nossas prerrogativas sexuais, produtivas, reprodutivas e nossas energias. A lesbiana — essa mulher que “tomou uma mulher como amante” — resiste ao imperialismo do amo nessa esfera de sua vida. A lesbiana descolonizou seu corpo. (CLARKE, 1988)
Em vista disso, nós da Coletiva Sangra compreendemos que, diante da monopolização de todas as instituições sociais pelo regime de dominação masculina, que é heterossexual, se faz necessário o exercício da autonomia lésbica dentro de espaços feministas organizados, a fim de estabelecer um ambiente exclusivamente lésbico, ou seja, onde o acesso masculino não se faz presente em nenhuma instância, nem simbolicamente. Ainda que os espaços mencionados sejam apenas de mulheres, o caráter misto ou não-lésbico dessa composição inevitavelmente direciona certas pautas à preocupação pela aprovação dos homens. Isso porque, mulheres heterossexualizadas, mesmo quando se mostram dispostas a direcionar sua análise pela perspectiva lésbica, não o fazem na prática, uma vez que ainda se relacionam intimamente com o opressor, estando, dessa forma, passíveis a priorizá-los em suas análises e prática politica.
O protagonismo lésbico, portanto, se manifesta em nossa coletiva atráves da existência de um setor interno autônomo nomeado como “célula lésbica”. Alinhadas à organização horizontal presente nos demais setores da Sangra, compreendemos como fundamental a confraternização de lésbicas entre si, visando a possibilidade de diálogo e troca acerca de questões pertinentes à lesbianidade. A promoção deste espaço seguro, além de garantir que as demandas lésbicas não sejam menosprezadas ou preteridas — o que é deveras comum em ambientes mistos — também nos permite direcionar a luta antipedofilia para a sua raiz: o lesbianismo.
Como foi pontuado pela escritora lésbica Sheila Jeffreys:
A perspectiva lésbica foi além da forma pela qual lésbicas entendiam a si mesmas e seus relacionamentos com outras mulheres. Foi de uma importância fundamental em relação à violência masculina contra mulheres, um problema que tange o cerne da política feminista radical e revolucionária. Feministas lésbicas criaram teoria e prática contra a violência masculina em número desproporcional à sua presença no MLM (Movimento de Libertação das Mulheres). Isso provavelmente ocorreu porque lésbicas não são constrangidas pelos compromissos feitos por feministas heterossexuais a fim de ter relacionamentos com homens. Feministas lésbicas eram livres para pensar além dos limites do sistema heterossexual, e isso é importante no reconhecimento da extensão e da forma da violência masculina contra mulheres. Enquanto feministas heterossexuais talvez sintam-se pressionadas a dizer que “nem todo homem” faz aquilo, a fim de proteger o homem que elas amam de quaisquer suspeitas projetadas pela violência masculina, lésbicas não têm esse receio. Elas podem, e o fazem, engajar numa análise profunda de toda a construção da sexualidade masculina. Elas explicam que a sexualidade está no cerne da fundamentação da opressão feminina, sendo a base sobre a qual membros da classe dominante dos homens e da classe subordinada das mulheres interagem intimamente, e a base na qual suas relações são organizadas em casamentos e relacionamentos.” (Jeffreys, 1997 [1985]; 2011 [1990]).
A condição da lésbica perante a ordem patriarcal é obrigatoriamente disruptiva: a existência lésbica promove, por si só, uma perturbação ao patriarcado. Dito isso, é absolutamente nocivo e desrespeitoso resumir a lesbianidade a uma mera orientação sexual, um traço de personalidade, apenas uma pequena parte de um grande espectro colorido e desnecessariamente complexificado onde tudo é tudo. Entretanto, isso vem acontecendo em ressonância ao advento da teoria queer enquanto análise academicamente aceita. Muito devido a um apelo político crescente por parte de movimentos progressistas liberais, centralizados pelo próprio LGBT, em torno da ideia de diversidade, a lesbianidade acabou sendo apropriada e distorcida. É desse modo que lésbicas são docilizadas. Infelizmente, muitas compram o discurso de que ser reconhecidas como uma ameaça ao status quo seria algo negativo e, por isso, deveriamos buscar conciliar lesbianidade e a norma heterossexual, considerando-as engrenagens igualmente importantes de uma mesma estrutura, de uma sociedade diversa e distópica em que a existência lésbica dentro de um regime heterossexual se apresentaria, de alguma maneira, enquanto algo funcional. Nesse mundo paralelo de arco-íris, o lesbianismo é colocado no mesmo saco que a homossexualidade masculina, a bissexualidade, a transsexualidade e outras várias categorias inventadas. Eles até mesmo repudiam o termo “lesbianismo”, tudo isso numa tentativa de abafar a voz de lésbicas que fizeram história levantando o próprio movimento e construindo uma extensa bibliografia, visto que o mínimo contato com a teoria lésbica já nos possibilita o entendimento de que o lesbianismo, muito mais do que uma prática afetivossexual moralmente reprimida pelos valores conservadores, como é o caso da homossexualidade masculina, se trata do caminho para uma revolução rumo à libertação das mulheres.
A escolha de amar apenas mulheres resiste a um princípio fundamental reforçado pela supremacia masculina, tal como Marilyn Frye aponta, que é amar o homem. Homens gays, mulheres heterossexuais, mulheres bissexuais, homens heterossexuais: todos amam homens. São conformistas. Apenas lésbicas são resistentes e rebeldes a ponto de colocar mulheres em primeiro lugar e se recusar a amar homens, contra todas as pressões da cultura de dominação masculina e de amor aos homens. (JEFFREYS, 1999)
A tentativa de equiparar a lesbianidade com a heterossexualidade ou mesmo colocá-las como similares, por ambas supostamente se tratarem de expressões diversas e naturais da sexualidade humana, já é algo equivocado. A movimentação em equalizar lésbicas às mulheres heterossexualizadas, normalmente, parte do pressuposto de que orientação sexual seria uma característica inata e, portanto, não passível de escolha. Entretanto, apesar de amplamente aceita em meios progressistas, a teoria do inatismo sexual é deveras prejudicial para lésbicas. Tal discurso tem sua origem, em partes, na movimentação histórica do ativismo gay de remover a homossexualidade da categoria de patologia e, assim, torná-la “uma orientação sexual como qualquer outra”. No entanto, ainda que para os homens homossexuais essa narrativa seja benéfica, tal teorização não nos favorece, uma vez que os atravessamentos sociais e psicológicos da lesbianidade não poderia ser colocados como similares nem mesmo à homossexualidade masculina. Além disso, o fato de uma teoria científica beneficiar ou não determinado grupo não é o suficiente para defendê-la, e não existem provas consistentes que confirmem a hipótese determinista do inatismo sexual, apenas estudos refutáveis que, muitas vezes, partem do pressuposto da homossexualidade, como um todo, enquanto uma anomalia da natureza.
A suposição de que “a maioria das mulheres são heterossexuais de modo inato” coloca-se como um obstáculo teórico e político para o feminismo. Permanece como uma suposição defensável, em parte porque a existência lésbica tem sido apagada da história ou catalogada como doença, em parte porque tem sido tratada como algo excepcional, mais do que intrínseco. Mas, isso também se dá, em parte, porque ao reconhecer que para muitas mulheres a heterossexualidade pode não ser uma “preferência”, mas algo que tem sido imposto, administrado, organizado, propagandeado e mantido por força. (RICH, 2010, p. 35–36)
A defesa da teoria de inatismo sexual, antes de ser reivindicada pelos homens gays, estabeleceu-se como ferramenta patriarcal para legitimação da heterossexualidade. Como foi pontuado anteriormente por Adrienne Rich, a linha de pensamento em questão não só é anti-lésbica como também é anti-feminista, uma vez que desconsidera o processo de heterossexualização como parte crucial da socialização feminima — ao mesmo tempo que remove qualquer possibilidade de recusa da atração heterossexual por parte das mulheres, que supostamente “nasceram assim”, visto que, nessa lógica, não haveria espaço para mudança.
No mesmo sentido, a noção de sexualidade inata se alinha diametralmente ao discurso pedófilo, que parte do pressuposto de que crianças sentem atração sexual, visto que, supostamente, teriam nascido com a sexualidade pronta, biologicamente desenvolvida no útero, experienciando sua “orientação sexual” desde sempre. Essa lógica acaba por legitimar o argumento presente no ativismo pedófilo, que defende que uma criança é capaz de desejar um adulto e consentir relações sexuais com o mesmo. Esse ativismo apropria-se também de outras narrativas presentes no movimento LGBT, ao afirmar que, assim como é dito sobre a homossexualidade, a pedofilia seria mais uma caracteristica inata presente no espectro da diversidade sexual e que, por isso, deveria também ser retirada do DSM.
A sociedade masculina define o lesbianismo como um ato sexual, o que reflete a visão limitada das mulheres: eles apenas nos pensam em termos de sexo. Eles também dizem que Lésbicas não são mulheres reais, logo, uma mulher real é aquela que é fodida por homens. Nós dizemos que uma Lésbica é uma mulher a qual o senso de si e de energias,incluindo energias sexuais, centram em torno de mulheres — ela é identificada com/como/na mulher (Mulher-Identificada). A mulher-identificada com a mulher compromete a si mesma às outras mulheres para suporte político, emocional, físico e econômico. Mulheres são importantes pra ela. Ela é importante pra si mesma. Nossa sociedade demanda que o comprometimento das mulheres seja reservado aos homens. (BUNCH, 1972)
Por fim, o lesbianismo não pode ser definido corretamente sem o dimensionamento do que significa ser lésbica sob o regime heteropatriarcal. Para além da atração sexual socialmente construída por outras mulheres, a lésbica se afeiçoa a si mesma, enquanto mulher. A partir da colocação de Charlotte Bunch da “mulher-identificada” [com outras mulheres], percebe-se que a lesbiana cultiva o ginoafeto de forma política, pois da transgressão ao destino de servidão à classe masculina, a mulher lésbica escolhe direcionar energia às mulheres, recusando-se a dedicar suas forças, por minimas que sejam, para os homens. Sendo assim, o lesbianismo pode ser muito bem delimitado enquanto categoria de si mesmo, já que, para além de assimétrica, mostraria-se falha a colocação de outra relação, seja ela de qualquer natureza, com qualquer instituição externa, visto que tudo o que se constrói em nossa sociedade é androcentrado, ainda que sutilmente. A única forma de organização instituinte que não se centraliza, de uma forma ou de outra, no que diz respeito aos interesses masculinos, é a lesbiana.
Como lesbianas políticas, ou seja, lesbianas que resistem aos intentos da cultura predominante de nos manter invisíveis e sem poder, temos (especialmente as lesbianas negras e outras mulheres de cor) que nos fazer visíveis a nossas irmãs escondidas em seus vários tipos de armários, encerradas nas prisões do auto-ódio e da ambiguidade, temerosas de tomar esse passo antigo das mulheres que se unem mais além do sexual, do privado ou pessoal. Não estou tratando de coisificar nem ao lesbianismo nem ao feminismo. Trato de mostrar que o lesbianismo-feminismo tem um potencial de transtornar e transformar um componente maior do sistema da opressão das mulheres, ou seja, a heterosexualidade viril. Se o feminismo-lesbianismo radical se pretende uma visão anti-racista, anti-classista e anti-ódio à mulher que forma uma união mútua, recíproca e infinitamente negociável; uma união livre das antigas prescrições e proscrições da sexualidade, então toda a gente que batalha para transformar o caráter das relações nesta cultura têm algo a aprender das lesbianas. (Clarke, 1988)
O lesbianismo político pode ser pontuado como um convite a todas as mulheres para a lesbianidade. Lésbicas políticas não acreditam que todas as mulheres são lésbicas e nem que todas elas vão tornar-se lésbicas. Nossa convicção é que toda e qualquer mulher pode se tornar lésbica; entendemos a lesbianidade como uma reivindicação política. Mulheres podem voluntariamente escolher não só cessarem o acesso masculino aos seus corpos como também passar a tomar outra mulher como amante. Ao pontuar o vínculo inseparável entre feminismo e lesbianismo, Cheryl Clarke sugere que a prática feminista, portanto, seria a lesbianidade: radicalizar-se e lesbianizar-se são sinônimos. Nesse sentido, ao compreendermos a heterossexualidade como um regime político de dominação da classe feminina, a associação de separação com homens deveria ser imediata. A partir da noção de que não existe exercício não compulsório da heterossexualidade sob o regime patriarcal, nossos esforços coletivos deveriam ser para destruir a heterossexualização e, assim, libertar as mulheres da classe masculina.
No entanto, a quebra das mulheres com as práticas heterossexuais é um processo que por vezes gera resistência em sua realização. Algumas mulheres, por um motivo ou outro, mesmo quando cientes de sua posição dentro do cativeiro sexual que é a heterossexualidade, permanecem heterossexualizadas. Tal fenômeno pode ser explicado a partir do entendimento de que é previsto para o funcionando do sistema patriarcal que certas mulheres participem de sua própria opressão; assim, ao se relacionar intimamente com um homem, a mulher ganharia certo prestígio social e todos os atributos que este traz (estabilidade financeira, por exemplo).
Muitas feministas não querem reconhecer o quanto elas se tornaram confortáveis com o privilégio heterossexual delas no sistema opressivo que muitas outras mulheres querem deixar para trás. Elas continuam pedindo por privilégios para elas mesmas, enquanto as condições para a maioria das mulheres permanecem inalteradas. Poucas feministas propuseram a abolição do heteropatriarcado racista, porque para isso elas teriam que confrontar sua própria cumplicidade e a dolorosa subordinação que os homens forçaram às mulheres através de terrorismo, doutrinação, privação e mentiras. (C. MARIA, 1999)
Como é pontuado por C. Maria, se rebelar contra a própria condição de subordinação e se recusar a continuar contribuindo para o sistema patriarcal é uma movimentação que afeta todos os setores da vida de uma mulher e, na maioria das vezes, confrontar essa estrutura a nível pessoal coloca mulheres em situação de vulnerabilidade social, já que quando uma mulher se separa dos homens, ela também está abrindo mão de seu lugar na economia heteropatriarcal e, por consequência, será empurrada para a margem.
Ter poder sobre algo é possuir os recursos necessários para decidir qual será o resultado de uma situação. Privilégio revogável é a capacidade de assimilar as decisões e a agenda de outras pessoas. Esse privilégio pode se manter, desde que as decisões e agenda dessas outras pessoas sejam seguidas. (LEE, 1988)
A diferença entre a posição de poder permanente exercida por homens e a de exercício de privilégio revogável por mulheres é conceituada por Anna Lee, quando a autora afirma que mulheres em aliança com homens possuem tal privilégio. Nesse sentido, para uma mulher se beneficiar em alguma instância do poder masculino ela precisa obrigatoriamente se aliançar a homens; a partir do momento que esta mulher corta seu vínculo com um ou mais homens, o seu privilégio se rompe também.
A diferença entre a posição de poder permanente exercida por homens e a de exercício de privilégio revogável por mulheres é conceituada por Anna Lee, quando a autora afirma que mulheres em aliança com homens possuem tal privilégio. Nesse sentido, para uma mulher se beneficiar em alguma instância do poder masculino ela precisa obrigatoriamente se aliançar a homens; a partir do momento que esta mulher corta seu vínculo com um ou mais homens, o seu privilégio se rompe também.
Entretanto, a autora lésbica Janice Raymond também evideciou para nós a necessidade de trazer de volta a política para o lesbianismo. Uma vez que o movimento lésbico tem sido cooptado pelo liberalismo, e assim, resultando em uma divisão entre um movimento político ou puramente um estilo de vida. Essa cooptação pelo liberalismo é uma cooptação heterossexual, sendo esse um sistema dos homens que nasceu do patriarcado, tal qual o capitalismo.
Esse estilo de vida lésbico está preocupado com o sexo. Não a sexualidade lésbica como uma afirmação política, ou seja, como uma mudança da realidade heterossexual. Mas sexo lésbico como foder — como fazer isso, quando fazer isso, o que fazer para que funcione — resumidamente, como liberar a libida lésbica. As lésbicas por estilo de vida e os conservadores heterossexuais concordam em uma coisa — que para as mulheres o sexo é a salvação — algo que nos levará para a terra prometida, o após-vida, a graça maravilhosa. Por exemplo, Marabel Morgan, em Uma Mulher Absoluta, ensina mulheres cristãs de direita como performar as fantasias completas de seus maridos com todos os trajes e posturas sexuais que seriam rivais do armazém lésbico libertário. Para as Marabel Morgans desse mundo, dentro do casamento, vale tudo. Uma esposa deve agir como uma amante. Samois, um grupo americano de sadomasoquismo lésbico, apoia chicotes e correntes, ‘’dor é prazer, escravização consentida, liberdade-através-da-servidão, realidade-como-jogo, e qualidade-pela-dramatização’’ (Meredith, 1982, p.97). Fora do casamento, na verdade, fora da heterossexualidade, vale tudo. Libertação lésbica se tornou libertarianismo lésbico. (RAYMOND)
Nesse sentido, ainda que toda lésbica carregue consigo uma transgressão social, se faz necessário reconhecer que nem todas as lésbicas estão comprometidas com a emancipação da classe feminina da qual pertencem, ainda que sua sobrevivência e de suas iguais dependa disso. As lésbicas não vão conseguir sobreviver sem romperem com o regime político heterossexual que tem construído a heterorrealidade, e resultado em milhares de anos de história e cultura lésbica apagadas, além de inúmeras agressões físicas e psicológicas contra a lésbica, nos condenando à destruição e autodestruição. Uma prova atual disso são as lésbicas sendo empurradas cada vez mais para o estupro corretivo promovido pelo movimento queer, ao alegar que lésbicas devem se envolver com pênis, pois caso contrário é transfobia. Ou ainda, incentivar a mutilição dos corpos lésbicos por meio da hormonização, ou alegar que sexo é um espectro, ou incentivando cada vez mais romantização e naturalizando o sadomasoquismo entre lésbicas. Além da naturalização do ritual da feminilidade, sendo esse um ritual de submissão que passou a ser considerado apenas como uma “performance”. Esses exemplos são típicos casos de extermínio lésbico que vem sendo promovidos atualmente, por meio de armadilhas patriarcais atualizadas. E tais armadilhas patriarcais adentram o espaço lésbico como um cavalo de tróia, a partir do liberalismo do estilo de vida lésbico. Ao criticar a prática sadomasoquista entre lésbicas, Audre Lorde delinea a profunda relação entre o patriarcado e as práticas heteronormativas implantadas na realidade lesbiana, como uma forma de despolitizar a lesbianidade e, portanto, reforçá-la como um estilo de vida adotado entre quatro paredes. Esta estratégia é política, projetada para desmatelar comunidades lésbicas, esfacelar o nosso potencial transformador e, sobretudo, apagar a história da resistência lesbiana milenar. A alienação massiva de mulheres acerca de seu potencial revolucionário de romper com o sistema, apresentando sua condição opressiva como imutável ou imperativa demais para ser alterada, apresenta-se como uma forma de apagar lésbicas como sujeitos de transformação social e econômica e, ainda, separar o indivíduo mulher de sua própria opressão e sua seguinte revolução. Enquanto mulheres heterossexualizadas estão sendo socializadas para acreditar que seus papéis são inatos e, portanto, são incapazes de subverter a ordem hierárquica de maneira mais profunda, lésbicas são silenciadas exponencialmente, de forma que nossas urgências e reivindicações sejam sufocadas até a total fraqueza.
Como uma mulher da minoria, eu sei que relações de dominação e subordinação não são apenas questões de quarto. Da mesma maneira que estupro não é uma questão de sexo, sadomasoquismo também não é, mas é uma questão de como nós usamos o poder. Se fosse somente uma questão de preferência sexual ou de gosto particular, por que esta seria apresentada como uma questão política? […] Primeiro, nós devemos nos perguntar se toda essa questão de sexo sadomasoquista nas comunidades lesbianas não está sendo usada para desviar atenção e energias de outras questões mais urgentes e imediatas, que têm a ver com a manutenção de nossas vidas, que estão nos encontrando enquanto mulheres num período racista, conservador e repressivo? Um desvio de atenção? Uma cortina de fumaça para as provocadoras da ordem? Segundo, o sadomasoquismo lesbiano não é uma questão do que você faz na cama, assim como o lesbianismo não é simplesmente uma preferência sexual. Por exemplo, o trabalho de Barbara Smith sobre o “Woman-identified woman”, sobre experiências “lésbicas” em Zora Hurston ou Toni Morrison. O que define a qualidade desses atos não é com quem eu durmo e nem mesmo o que fazemos juntas, mas sim que afirmações de vida estou inclinada a tomar como natureza e efeito das minhas relações eróticas que se infiltram por toda minha vida, por todo meu ser? Sendo um veio profundo de nossas vidas eróticas e de nossos conhecimentos eróticos, como é que a sexualidade nos enriquece e empodera nossas ações? (LORDE, 1988)
Assim, precisamos retomar a política para o lesbianismo por uma necessidade de sobrevivência, porque não há possibilidade de sobrevivência para nós sem rompermos com a heterorrealidade. E na lésbica jaz todo o potencial revolucionário de subverter a ordem e redefinir essa cultura milenar de pura violência masculina que tem sido sustentada a partir da heterossexual. A maior prova disso é que as lésbicas são as pioneiras na causa da mulher porque através da percepção de que a heterrossexualidade não é inata, ou seja, não é uma necessidade biológica ou instintiva das mulheres se relacionarem com homens, foi possível perceber que os papéis sexuais também não eram naturais, mas sim uma hierarquia construída socialmente, para manter as mulheres aprisionadas aos homens. Assim, se a raiz da opressão patriarcal das mulheres se encontra na heterossexualidade, então a raiz de sua emancipação se encontra no lesbofeminismo, como a história registra.
Esse movimento (lesbofeminista) foi a mudança mais forte da hetero-realidade que o feminismo encarnou. Isso mudou a visão de mundo que as mulheres existem para os homens e primariamente em relação a eles. Isso mudou a história das mulheres como primariamente revelada na família — uma história que frequentemente, no melhor dos casos, renderia às mulheres apenas relações com homens e eventos definidos pelos homens. Isso mudou a aparente verdade que ‘’Você como uma mulher deve se unir com um homem’’, sempre buscando nossas metades perdidas na complementaridade das relações heterossexuais. Isso também mudou a definição do feminismo como igualdade das mulheres com os homens. Em vez disso, isso fez uma visão real de igualdade das mulheres com Nós Mesmas. Definiu a igualdade como sendo igual para aquelas mulheres que têm sido pelas mulheres, vivido pela liberdade das mulheres e que morreram por isso; aquelas que lutaram por mulheres e sobreviveram pela força das mulheres; aquelas que amaram as mulheres e perceberam que sem a consciência e convicção de que as mulheres são primárias na vida de cada uma, nada mais está em perspectiva. Esse movimento trabalhou a favor de todas as mulheres. Ele não tinha medo de definir estupro como sexo — não apenas violência, mas sexo. Ele criticou a prostituição e pornografia como sexualidade prejudicial para as mulheres e não tiveram medo de falar contra os revolucionários sexuais homens que queriam libertar todas as mulheres que tinham acesso para essa liberdade falsa. Ele estabeleceu centros para mulheres agredidas e levou a campanha feminista contra violência à mulher. (RAYMOND)
Se nós queremos o fim dessa guerra milenar dos homens contra a classe feminina, então nós precisamos retomar esse movimento que seguia por uma perspectiva lesbofeminista. Sem enxergarmos a raiz da condenação feminina, o movimento lesbofeminista é apenas paliativo. Ou seja, apenas promove reformas que causam um alívio temporário, mas não coloca um fim em toda essa violência que temos sido submetidas.
Quando nós encaramos de modo mais crítico e claro a abrangência e a elaboração das medidas formuladas a fim de manter as mulheres dentro dos limites sexuais masculinos, quaisquer que sejam suas origens, torna-se uma questão inescapável que o problema que as feministas devem tratar não é simplesmente a “desigualdade de gênero”, nem a dominação da cultura por parte dos homens, nem qualquer “tabu contra a homossexualidade”, mas, sobretudo, o reforço da heterossexualidade para as mulheres como um meio de assegurar o direito masculino de acesso físico, econômico e emocional a elas . Um dos muitos meios de reforço é, obviamente, deixar invisível a possibilidade lésbica, um continente engolfado que emerge à nossa vista de modo fragmentado de tempos em tempos para, depois, voltar a ser submerso novamente. A pesquisa e a teoria feminista que contribuem para a invisibilidade ou marginalidade lésbica estão realmente atuando de modo contrário à libertação e ao empoderamento das mulheres como um grupo. (RICH, 2010, p. 35)
Ademais, a luta antipedofilia deve ser prioridade nos movimento lesbofeminista se queremos desmatelar o regime político heterossexual. Já que a cultura da pedofilia é a ferramenta utilizada para fragilizar a menina, de modo que ela seja condicionada desde cedo à passividade diante dos seus corpos sob exploração masculina, sendo a pavimentação primária da subserviência feminina. Dessa forma, nós lésbicas da célula autônoma da Sangra Coletiva queremos deixar aqui dois convites: um para as heterossexualizadas repensarem o que significa para vocês as suas relações com os homens e a respeito da lesbomisoginia que tem hostilizado lésbicas em espaços feministas. O que significa se relacionar com o opressor — tanto para si mesmas quanto para outras mulheres — já que o pessoal é político. E o outro convite é para as lésbicas se comprometerem com a luta antipedofilia, porque não há libertação feminina sem a proteção da infância. Assim, convocamos todas vocês para estarem verdadeiramente dispostas a construírem a revolução feminista, que a lesbianidade já exala.
Sobreviventes sangram. Sobreviventes se curam juntas.
Nathália Gouveia| integrante da célula lésbica da Sangra Coletiva
Pixie| integrante da célula lésbica da Sangra Coletiva
Valerie | integrante da célula lésbica da Sangra Coletiva
Anya | integrante da célula lésbica da Sangra Coletiva
Referências bibliográficas:
BRASIL CONTRA SAP. Um vídeo definitivo sobre a Lei da Alienação Parental. São Paulo, SP. 9 out. 2020. Instagram @brasilcontrasap. Disponível em: https://www.instagram.com/tv/CAsN_oQH4z1/. Acesso em: 21 jan. 2021.
BUNCH, Charlotte. Tremores e Arrepios na supremacia masculina: lésbicas em revolta. Revista The Furies, vol.1. Estados Unidos, 1972. Disponível em: http://www.feminist-reprise.org/docs/lwmbunch.htm. Acesso em: 27 jan. 2021.
CLARKE, Cheryl. Lesbianism: an act of resistance. Massachusetts, 1981. Disponível em português: https://we.riseup.net/sapafem/lesbianismo-um-ato-de-resist%C3%AAncia-cheryl-clarke. Acesso: 21 jan. 2021.
DWORKIN, Andrea. Remember, resist, do not comply. Toronto, 1995. Disponível em português: https://medium.com/qg-feminista/n%C3%A3o-reclame-resista-6123d457b419. Acesso em: 21 jan. 2021.
JEFFREYS, Sheila. Bisexual politics: a superior form of feminism?. Melbourne, 1999. Disponível em: https://we.riseup.net/lesbianaconvicta/bisexual-politics+625879. Acesso em 21 jan. 2021.
JEFFREYS, Sheila. The lesbian revolution: lesbian feminism in the UK 1970–1980. Nova Iorque, 2018.
LEE, Anna. Por amor ao separatismo. Revista Lesbian Ethics, vol.3. Estados Unidos, 1988. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1iq5ZoOuX8H0MfgP-Ndb64oEFg-STtuTU/view. Acesso em: 27 jan. 2021.
LORDE, Audre. O sadomasoquismo na comunidade lésbica. Disponível em: https://apoiamutua.milharal.org/files/2014/01/AUDRE-LORDE-leitura.pdf. Acesso em 27 jan. 2021.
MARIA, C. Separatismo não é um luxo: algumas reflexões sobre separatismo e classe. Revista Lesbian Ethics, vol.4. 1999. Disponível em: https://heresialesbica.noblogs.org/files/2014/04/Separatismo-N%C3%A3o-%C3%89-um-Luxo-ok.pdf. Acesso em: 27 jan. 2021.
ORESTES, Natacha. Por que pautamos a pedofilia no 8 de março? Medium Sangra Coletiva, 2020. Disponível em: https://coletivasangra.medium.com/por-que-pautamos-a-pedofilia-no-8-de-mar%C3%A7o-10 43577825f Acesso em: 21 jan. 2021.
RAYMOND, Janice. Trazendo a política de volta ao lesbianismo. Traduzido por Etcetera, MEDIUM, 2018. Disponível em: https://medium.com/@et_ce_tera/trazendo-a-pol%C3%ADtica-de-volta-ao-lesbianismo-65ba0f12ee7a. Acesso em: 21. jan. 2021.
RAYMOND, Janice. A passion for friends:towards a Philosophy of female affection. Boston: Beacon Press, 1986. Disponível em: https://we.riseup.net/sapafem/heterorrealidade#janice-raymond-a-passion-for-friends-towards-a-phi. Acesso em: 21 jan. 2021.
RICH, Adrienne. Heterossexualidade compulsória e existência lésbica. Disponível em: https://apoiamutua.milharal.org/files/2014/01/heterossexualidade-compulsoria-e-existencia-l%C3%A9sbica-leitura.pdf. Acesso em: 21 jan. 2021.
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