Meninas autistas e abuso sexual infantil

Sangra Coletiva
9 min readMar 31, 2021

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Para as pessoas inseridas na luta antipedofilia, não é uma surpresa o descaso e o desinteresse se tratando da segurança de crianças, bem como a falta de investimento geral na compreensão e cuidado de meninas e meninos que sofreram algum tipo de abuso sexual. Encontram-se diversas barreiras ao informar sobre os impactos sociais, políticos e psicológicos do abuso infantil. Quando se tratando da realidade autista, tal descaso para com a problemática antipedofilia é somado ao capacitismo e invisibilização sofridos por pessoas neuroatípicas.

O transtorno do espectro autista (TEA) é caracterizado por dificuldades de
comunicação e interação social e também pela presença de comportamentos e/ou interesses repetitivos ou restritos. O TEA — comumente chamado apenas de “autismo” pela população geral — , varia também nos chamados “níveis de gravidade”, que vão do autismo leve (anteriormente chamado Síndrome de Asperger) ao denominado autismo severo. Tal categorização é designada conforme a quantidade de suporte que a pessoa dentro do Espectro Autista precisaria. Embora essa designação possa ser considerada controversa dentro da comunidade autista, é unânime o reconhecimento das muitas dificuldades e adversidades encontradas no cotidiano de pessoas com TEA, independentemente do grau em que o indivíduo se encontra no espectro (Sociedade Brasileira de Pediatria, 2019).

A comunidade autista, apesar de sua variedade de indivíduos com perfis diferentes, frequentemente é vista como uma comunidade de mães e crianças. Apesar da pouca representação midiática (majoritariamente branca e masculina), é inegável que mães e crianças se encontram desamparadas em todos os seios da sociedade, logo, não seria diferente se tratando de indivíduos autistas e suas cuidadoras.

Nesse 2 de abril, Dia Mundial da Conscientização do Autismo, instigar a
compreensão daquilo que compõe a situação de vulnerabilidade de crianças com TEA em um cenário de abuso sexual se mostra fundamental na luta antipedofilia. Apesar das limitações ao falar sobre pedofilia em uma sociedade patriarcal, racista e capitalista — que constantemente se beneficia e se alimenta da exploração de crianças e mulheres — , como resultado da árdua luta antipedofilia, atualmente, os estudos e fontes disponíveis sobre a questão são relativamente bem desenvolvidos. Infelizmente, isso não se aplica em sua totalidade a PCDs (pessoas com deficiências) com alguma dificuldade motora ou neurológica, pois estes são extremamente marginalizados. A falta de interesse em proteger a vida de uma criança autista e manter sua infância segura e livre de abusos fica evidente diante da escassez de estudos e fontes de dados acerca desses tópicos.

Segundo pesquisadores norte-americanos (Kerns, Newchaffer, Berkowitz, 2015), problemáticas adicionais como isolamento social, um ambiente familiar estressante e dificuldades de comunicação, fatores que aumentam o risco de abuso infantil, também são mais comuns de estarem presentes na realidade de que crianças com algum tipo de transtorno intelectual ou do desenvolvimento. Isso faz com que a probabilidade de que elas sejam vítimas de qualquer tipo de abuso seja de 1.5 até 3 vezes maior do que a daquelas que estão fora deste grupo.

Apesar do fato de que não precisamos de tantos estudos assim para entender que estas crianças estão em maior vulnerabilidade em comparação às crianças neurotípicas, fora do ambiente familiar ou da própria comunidade autista, em uma perspectiva geral, poucas pessoas realmente se esforçam para compreender e transformar esse cenário. Quem se pronuncia sobre, informa e exige medidas que protejam crianças autistas, quase sempre são as próprias mães. Muitas delas sequer possuem apoio dos pais das crianças, além das barreiras financeiras que as impedem de alcançar o objetivo de uma realidade melhor para seus filhos.

Crianças autistas constantemente têm negados os seus direitos aos estudos, seja pelo governo e instituições de ensino ou pelo estigma que impede que a educação sexual adequada chegue nessas crianças. Sabe-se que educação sexual é fundamental para a prevenir que o abuso sexual infantil se estabeleça ou perpetue, visto que ajuda e orienta a criança a identificá-lo, e isso não seria diferente para crianças neuroatípicas, principalmente pelo fato de que existe uma propensão menor de que aprendam sobre isso através da mídia ou através da socialização não verbal e sutil com outras pessoas, considerando que a necessidade de uma comunicação clara e objetiva é um aspecto comum entre os diversos níveis de TEA (Sociedade Brasileira de Pediatria, 2019). Sendo assim, é imprescindível que essas crianças recebam orientações sobre a diferença entre comportamento apropriado e inadequado, e também sobre a distinção entre os relacionamentos saudáveis e os que oferecem perigo (Ballan, 2011).

Ainda assim, existe uma noção errônea de que seria menos importante ensinar crianças autistas sobre sexualidade, sob o pressuposto de que a sexualidade não irá fazer parte de suas vidas em nenhum momento. A educação sexual mais básica para essas crianças inclui ensinar sobre como realizar as necessidades fisiológicas de forma independente, como trancar portas de banheiros de forma eficiente, quem pode ajudá-los com cuidados específicos, como reconhecer e reportar abusos, sobre os perigos da pornografia e das informações sexuais advindas de terceiros, entre outros ensinamentos valiosos. Além disso, crianças autistas possuem dificuldades consideráveis em entender o significado de espaço pessoal, podendo se aproximar de outras pessoas puramente por interesse sensorial (exemplo: tocar o tecido da roupa de um desconhecido, mexer no cabelo de alguém e etc), sendo esta apenas uma das características que as tornam mais vulneráveis ao abuso (Ballan, 2011).

Ademais, seria incoeso levantar discussões sobre as dificuldades de crianças
autistas em um mundo capacitista sem mencionar a enorme sobrecarga emocional e física que as mães dessas crianças experienciam. Segundo dados recolhidos pelo Instituto Baresi, no Brasil, cerca de 78% dos pais abandonam as mães de crianças com deficiências e doenças raras, antes mesmo dos filhos completarem 5 anos de vida.

Em um cenário tão desafiador, o apoio da sociedade deveria ser proporcionalmente maior, contudo, muitas mães não conseguem manter suas carreiras, trabalho doméstico, cuidados com os filhos e com elas mesmas balanceados sem se sentirem sobrecarregadas. Desse modo, a dependência da ajuda de pessoas aparentemente solícitas é um grande fator de risco para crianças autistas (Ballan, 2011), considerando que, para um abusador, uma forma fácil de ter acesso à criança seria se aproveitando da situação vulnerável de sua mãe enquanto principal ou única cuidadora.

Os pedófilos sabem que crianças autistas são alvos fáceis, por isso o abuso sexual dessas crianças costuma ocorrer durante o dia e em espaços aparentemente seguros, por familiares e auxiliares de cuidados. Os abusadores tiram vantagem da dificuldade que crianças autistas têm em identificar e relatar o abuso ocorrido, tiram vantagem do grande fluxo de adultos com quem essas crianças entram em contato e, sobretudo, reconhecem e se aproveitam do descaso geral com as experiências de sofrimento desse grupo.

Dentre a categoria de pedófilos que manipulam suas vítimas por um período de tempo, vítimas autistas se encontram como vulneráveis por demonstrarem uma necessidade de aceitação social externa, gerada por essa mesma sociedade devido ao capacitismo e à falta de preocupação em incluir pessoas neuroatípicas nos espaços e atividades cotidianas. Assim, pedófilos se disfarçam de amigos e garantem, dessa forma, que a denúncia não ocorra. Cuidadores, provedores de serviços de transporte, enfermeiros e médicos se encaixam como potenciais abusadores oportunistas, se aproveitando de situações comuns da rotina de autistas, inserindo facilmente o abuso a essa rotina e manipulando a criança para que o normalize, tendo em vista que, devido aos comportamentos repetitivos presentes no TEA, a rotina é uma parte importante no dia a dia dessas crianças (Sociedade Brasileira de Pediatria, 2019).

Devido à natureza do transtorno, crianças com autismo podem ter dificuldade com os métodos usados ​​atualmente para avaliar a ocorrência de um abuso sexual, em razão do uso de questionários longos e a necessidade de reciprocidade em trocas verbais (Stack, Lucyshyn, 2019). Por isso, é importante utilizar alternativas diferentes, levando em consideração a forma de interação escolhida pela criança, assim, isso evita os casos recorrentes de julgamento incorreto onde sinais de trauma por abuso sexual são confundidos por sinais do próprio TEA.

Essa é uma das principais dificuldades na identificação de abusos sofridos por
crianças com autismo, visto que os sinais típicos que indicam a presença do trauma sexual em crianças neurotípicas são traços comuns às neuroatípicas. Até mesmo profissionais capacitados estão inclinados a apontar o autismo como fonte de sintomas traumáticos expressados pela criança, ignorando a possibilidade do abuso sexual.

Esse é um dos motivos que torna indispensável que sejam feitos mais estudos acerca dos sintomas de trauma devido a abuso especificamente em crianças autistas (Stack, Lucyshyn, 2019). É necessário que seja lançado um olhar mais cuidadoso e analítico sobre o comportamento dessas crianças, para que, desse modo, desvios nesse padrão comportamental que possam apontar para a ocorrência de abuso sejam identificados mais rapidamente.

Para além da identificação do abuso, é importante também pensar em suas consequências no que diz respeito ao desenvolvimento social e psicológico da pessoa com TEA, considerando que, segundo Teicher (2002), o abuso na infância pode causar impactos permanentes na vítima não apenas subjetiva, mas neurologicamente.

Como o abuso infantil ocorre durante o período formativo crítico em que o cérebro está sendo fisicamente esculpido pela experiência, o impacto do extremo estresse pode deixar uma marca indelével em sua estrutura e função. Tais abusos, parece, induzem a uma cascata de efeitos moleculares e neurobiológicos, que alteram de modo irreversível o desenvolvimento neuronal. (Teicher, 2002, p. 2)

Tais impactos acontecem a depender da frequência do abuso, de qual papel o abusador exerce na vida da criança e da idade da vítima. Os locais do cérebro onde foram encontrados danos visíveis foram o hipocampo, a amígdala e nor cortex pré-frontal. Estas estruturas fazem parte de um sistema responsável principalmente por regular estados de excitação, coordenação motora, regulação comportamental e memória (Stack, Lucyshyn, 2019).

Todas as consequências neurobiológicas citadas acima podem aparecer em qualquer pessoa com Estresse Pós Traumático devido ao abuso na infância. No caso de sobreviventes autistas, o agravante é que o sistema límbico-hipotalâmico-pituitário-adrenal já demonstra irregularidades em pessoas no espectro, e esse é justamente o sistema prejudicado pelo abuso em pessoas com Estresse Pós Traumático. Embora não haja até o momento nenhum estudo que demonstre diretamente o agravamento dos sintomas do próprio TEA em sobreviventes, essa consequência é, claramente, uma possibilidade muito forte (Stack, Lucyshyn, 2019).

Mesmo os estudos apontando uma realidade tão perturbadora, ainda assim, um grande desafio para a luta antipedofilia hoje é lidar com a evidente despreocupação com o bem estar das crianças e sobreviventes, não apenas por parte da população leiga, mas também por aqueles que compõem movimentos que visam a transformação política e social. Isso é preocupante. Enquanto movimentos de esquerda, incluindo o próprio feminismo, permanecem em descaso, políticos da direita conservadora conquistam a confiança das sobreviventes com discursos punitivistas rasos que prometem o fim do abuso através de castração química (um método comprovadamente ineficaz e disfuncional). Em relação às PCDs, podemos perceber um fenômeno muito similar: a esquerda, perdida em suas discussões identitárias e imateriais, não demonstra preocupação alguma em garantir os direitos dessas pessoas; enquanto, do outro lado, políticos conservadores ganham o apoio da comunidade com suas propostas envoltas em valores de proteção à família e educação docilizadora.

Tudo isso só demostra a real necessidade de construção de um movimento antipedofilia cada vez mais forte, embasado e, indispensavelmente, radicalizado, visto que, para que seja possível proteger crianças e acolher sobreviventes, é preciso muito mais do que uma visão rasa e liberal acerca da pedofilia. Apenas entendendo a pedofilia enquanto um sistema político que existe em benefício do patriarcado, da supremacia branca e do capitalismo.

Trazer a pedofilia como uma questão de saúde mental do abusador e criar uma demanda de tratamento para ele, além de não fazer sentido a partir do momento em que se percebe suas ações enquanto calculadas e premeditadas diretamente contra os mais vulneráveis (como no caso de crianças com TEA), é colocá-lo, de certa forma, no mesmo patamar de sua vítima, como se o suposto “transtorno pedofílico” do violador tivesse o mesmo grau de importância e merecesse tanta atenção quanto as sérias consequências emocionais, físicas e até mesmo neurobiológicas de sua vítima.

A explícita e alarmante vulnerabilidade de crianças no espectro autista em relação à violência pedófila é um exemplo horrivelmente perfeito do teor político e de manutenção dos poderes que está por trás das ações dos abusadores. Por isso é tão importante a continuação e o crescimento da nossa luta, bem como a inclusão de questões tão fundamentais como o capacitismo em nossas pautas.

Sobreviventes sangram. Sobreviventes se curam juntas.

Nathalia Gouveia | integrante da Sangra Coletiva

Mareu Medrado | convidada

Referências:

BALLAN, M. S. Parental Perspectives of Communication about Sexuality in Families of Children with Autism Spectrum Disorders. Journal of Autism and Developmental Disorders, p. 676–684. Texas, EUA. 2011.

CARBAJAL, J.; PRAETORIUS, R. How does autism affect the prossessing of child sexual abuse trauma? Journal of Human Services, Volume 5. Texas, EUA. 2020.

KERNS, C. M.; NEWSCHAFFER, C. J.; BERKOWITZ, S. J. Traumatic Childhood Events and Autism Spectrum Disorder. Journal of Autism and Developmental Disorders, p. 3475–3486. Texas, EUA. 2015.

SOCIEDADE BRASILEIRA DE PSIQUIATRIA. Manual de Orientação: Departamento Clientífico de Pediatria do Desenvolvimento e Comportamento. Nº 05, Abril de 2019.

STACK, A.; LUCYSHYN, J. Autism Spectrum Disorder and the Experience of Traumatic Events: Review of the Current Literature to Inform Modifications to a Treatment Model for Children with Autism. Journal of Autism and Developmental Disorders, p. 1613–1625. Texas, EUA. 2019.

TEICHER, M. H.. Feridas que não cicatrizam: A neurobiologia do abuso infantil. Revista Scientific American Brasil, 1, 83–89. 2002.

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