Exploração, confraternização e rompimento

Sangra Coletiva
28 min readDec 24, 2020

--

Um texto-abraço para sobreviventes no final do ano.

Mulheres reunidas, na cozinha, preparam comidas de forno e sobremesas enquanto conversam. Elas estão falando sobre seus maridos, filhos, obrigações familiares, trocando receitas de comida, beleza e cuidados domésticos, para que melhor possam servir seus familiares. Enquanto isso, os homens, no sofá da sala, também conversam, mas falam sobre seus próprios interesses. As crianças brincam pela casa. Como plano de fundo, o som da televisão ligada em uma programação especial abafa os seus incômodos. Todos conhecem essa cena.

Finais de ano são sempre marcados pelas grandes festividades de Natal e Ano Novo, e, consequentemente, pelos estigmas que essas reuniões carregam simbólica e culturalmente: união familiar, esperança, sentimento de realização, troca de presentes e muita festa. No entanto, diante dessa considerável euforia generalizada, é preciso relembrar que a classe feminina é responsabilizada por ser aquela que alicerça e concretiza, anualmente, essas festas. Esse texto tem como foco principal as sobreviventes de abuso intrafamiliar, forçadas a não apenas conviver com seus agressores, como também a desempenhar o papel de servi-los.

Originalmente, o Natal era uma festa pagã, mas posteriormente foi ressignificada e apropriada pelo Cristianismo, sendo difundida juntamente com a religião católica e passando a ser comemorada em diversos países do mundo.A importância que essa data tomou para a sociedade ocidental se deve muito à Rainha Vitória que, no século XIX, era considerada um modelo a ser seguido para as aristocratas inglesas. Assim como o costume de vestir-se de branco ao casar, de preto ao enviuvar e com corsetes apertados durante toda a vida, essa nobre foi responsável por ditar a moda que transformou um feriado qualquer em uma data importante para as famílias ricas da Europa. Dada a dimensão que tomou ao longo dos séculos, o Natal foi, aos poucos, perfeitamente incorporado ao capitalismo, de forma a gerar lucro sobre seus símbolos — esfacelando quaisquer nuances ainda positivas de sua imagem, promovida ao nível de mercadoria. Não é preciso muito esforço para perceber que produtos como enfeites, presentes, músicas, filmes e comidas natalinas já começam a ser vendidos várias semanas antes do dia em si. Há também as clássicas propagandas publicitárias que associam o Natal perfeito à ideia de felicidade, com fartura e momentos bons em família, sempre em família. A reunião de tantos parentes e amigos na ceia, contudo, depende da mão-de-obra majoritária das mulheres. O regozijo masculino está atrelado à subordinação feminina sistemática em raízes históricas, em forma de trabalho doméstico.

É importante reconhecer que, quando falamos de trabalho doméstico, não estamos falando de um trabalho como outros trabalhos, mas estamos falando da manipulação mais penetrante, da violência mais sutil e mistificada que o capitalismo jamais perpetrou contra qualquer setor da classe trabalhadora. (FEDERICI, 1974)¹

A jornada de trabalho múltipla na vida da classe feminina, que se intensifica quando são postos sob foco os fatores de raça e classe, é mão-de-obra fundamental para a estruturação dessas reuniões familiares. Tais confraternizações demandam a dedicação da mulher a tarefas socialmente destinadas a ela, como cuidar de crianças, preparar a comida, arrumar a casa, arrumar-se para se tornar atraente ao olhar masculino (mesmo que inconscientemente) e manter uma postura integral de anfitriã. Assim, essas festas acabam funcionando como um lembrete anual, para as mulheres, do que delas é esperado, à medida em que promovem um retorno ao ambiente onde estas foram submetidas pela primeira vez à sua opressão: o ambiente familiar.

A socialização da mulher subverteu a tradução perversa do trabalho doméstico, transformando-o em um aspecto inerente à natureza feminina, uma aspiração e um resultado do caráter feminino (FEDERICI, 1974). Vale salientar que, mesmo diante de trabalhos formais, mulheres trabalham cerca de três horas a mais que os homens, excedente de tempo dedicado ao cuidado doméstico e fazendo até 4 jornadas de trabalho entre trabalho doméstico, cuidado com os filhos, trabalho remunerado e estudos.² Nesse processo, a mulher se desumaniza, passando a ser vista como um objeto útil apenas para a serventia de homens: incansável, frágil, dócil, submissa, com aparência sempre impecável, geracionada para ser acorrentada ao seu gênero. A mulher constrói sua própria individualidade dentro de uma dinâmica de desumanização (HARAWAY, 1993).³ É nesse ambiente em que ocorre uma explícita segregação sexual, no qual, segundo Adriana Guzman, crianças são ensinadas a naturalizar o corpo feminino ao lugar da servidão. É observando a exploração de suas mães, irmãs, tias e avós que crianças aprendem que mulheres são para servir, associando-as à disposição constante e à servidão de outros homens:

Onde uma criança aprende que pode explorar alguém? No corpo das mulheres. Porque elas cozinham e criam os filhos e isso sequer é chamado trabalho. (GUZMAN, 2014)⁴

De forma análoga, as relações intrafamiliares ensinam meninas a ser exploradas, uma vez que a divisão sexual do trabalho doméstico tem início precoce e recai sobre crianças do sexo feminino. Apesar da socialização feminina ter facetas mais cruéis para com meninas socioeconomicamente marginalizadas e, sobretudo, indígenas e negras, não oferecendo outra opção senão o trabalho doméstico compulsório — essencial ao sustento e estruturação familiar — , a cultura também tem papel fundamental na criação de meninas. Mesmo em ambientes familiares tidos como abertos e “liberais”, a estrutura social possui alicerces rígidos: todos os elementos culturais refletem e projetam os valores patriarcais da sociedade; por mais que a aparente ideia transpassada seja de que, atualmente, mulheres têm alcançado certo grau de liberdade e autonomia, crianças são empurradas desde cedo aos seus futuros papéis de subordinadas dentro de um cenário exploratório.

Servindo também como uma ferramenta de reafirmação da hierarquia fundada pelo poder masculino, sobretudo para as meninas, está o abuso infantil. Este que é cometido, em grande parte das vezes, no ambiente familiar. Normalmente o abusador é um homem que faz parte dessa teia de pessoas responsáveis por ensinar à criança o que ela é, para que ela serve, qual o seu lugar no mundo. Abusando de uma menina, ele não está se desviando de seu papel, pelo contrário, está o cumprindo. Não é à toa que esta é uma experiência comum entre mulheres e meninas: a pedofilia é um método pedagógico patriarcal; o homem que a utiliza, para esse sistema, está o ensinando. O abuso infantil é a maneira mais eficiente de condicionar meninas ao futuro sujeitamento à classe masculina e criar vínculos traumáticos com seus agressores dentro de um sistema patriarcal, diretos e estruturais: homens. Segundo o Ministério da Saúde, foram notificados 184.524 casos de violência sexual contra crianças e adolescentes entre 2011 e 2017. No caso de crianças, 71,2% dos casos ocorreram na própria residência, sendo que 39,7% do número absoluto de abusos de crianças teve um histórico de repetição.⁵ Através da vulnerabilização e morte psicológica da vítima, todos os abusos sofridos servem como um campo de treinamento ao que a espera: heterossexualidade compulsória, maternidade comportamental em relacionamentos com homens, trabalho doméstico e reprodutivo, estupro marital, dissociação e, sobretudo, apego ao cativeiro.

A Síndrome de Estocolmo é assunto do livro Loving to Survive, no qual Dee Graham delineia a profunda relação entre a violência masculina e os relacionamentos heterossexuais. Ainda hoje, não há uma resposta concreta do motivo pelo qual esse apego da vítima ao agressor acontece, contudo, muitos pesquisadores tentam explicar o processo envolvido a níveis psicológicos e neuroquímicos. Graham expõe em sua obra que a pedofilia é um método de condicionamento psicológico⁶; o aliciamento coletivo de crianças, adolescentes e mulheres adultas ocorre a níveis públicos e privados, respectivamente através da cultura (DINES, 2010) e dos próprios agressores.

Nessa cultura hipersexualizada, nós estamos socializando garotas para que elas se vejam como legítimos objetos sexuais que merecem ser sexualmente usadas (e abusadas). A pessoa que melhor me explicou isso não foi um expert em estudo de mulheres, mas um pedófilo encarcerado. Durante uma entrevista na prisão de Connecticut, John me contou como, cuidadosa e estrategicamente, ele aliciou sua enteada para “consentir” a fazer sexo com ele, e, então, ele casualmente me contou que seu trabalho foi fácil porque “a cultura fez uma boa parte do aliciamento para mim.” (DINES, 2010)⁷

É por meio de assédio, abuso, coerção e aliciamento que se inicia o processo interminável de traumatização da mulher. Parafraseando a psicóloga e integrante da Sangra, Nathália Gouveia, em uma de nossas lives, “ser mulher é um trauma”.⁸ Após a vítima internalizar, de forma traumática, os abusos sistemáticos, um dos principais sintomas é a dissociação — é a partir dela que homens continuam impondo poder deliberadamente, sem que mulheres associem a violência masculina ao processo violento que sofreram desde o nascimento. A desconexão com a realidade, a perda de memória referente aos traumas, o reforço inconsciente de comportamentos maléficos a si mesma, impostos pela cultura, são formas que sobreviventes encontram para lidar com abusos sofridos na infância, como um mecanismo de defesa, a fim de distanciar a realidade material de seu trauma. Há casos de sobreviventes que relatam esquecimento ou ausência total de memórias de infância, cujos abusos costumam ser revividos durante acompanhamentos psicoterapêuticos.

Quando eu era menor, fui muito assediada repetidamente por alguns tios meus, tanto que parte da minha memória é totalmente bagunçada porque não consigo lembrar exatamente de tudo o que fizeram comigo; as lembranças mais fortes que eu tenho são de sentir pânico e desespero toda vez que ele chegava perto de mim. […] Ele sempre foi muito querido por todos, e, [por isso], nunca tive coragem de realmente dizer que ele era um abusador e pedófilo. Sempre precisei viver com isso dentro de mim e aguentar em silêncio, até porque, mesmo não dizendo nada, eu já era destratada [pelo resto da família quando decidi cortar contato]. Passar o Natal com ele era bem desconfortável. Eu tinha que fingir demais, abraçá-lo, deixá-lo encostar em mim, sentar perto e conversar com ele. Eu não sabia como reagir, então quando ele chegava perto de mim eu só ficava ali, mesmo que minha maior vontade fosse levantar e ir embora. Já tiveram insinuações sexuais que ele, inclusive, fez na frente de outras pessoas, […] então eu meio que me sentia obrigada a aceitar. […] Ele ficava passando a mão no meu braço, falando algumas coisas, pegando na minha nuca, segurando meu cabelo… tudo isso, e eu não sabia como reagir: não tinha com quem conversar, e eu me sentia na obrigação de ser “educada” com ele. Eu não sabia a diferença de educação e “complacência”, óbvio, né? Eu era praticamente uma criança, mas foi o que me ensinaram…

- Relato de Bianca, mulher lésbica e sobrevivente de abuso intrafamiliar

“As vítimas são obrigadas a conviver com seus abusadores e até mesmo a servi-los”.

As reuniões familiares que ocorrem durante as festas de fim de ano ilustram perfeitamente esse processo. Nessas confraternizações, as vítimas são obrigadas a conviver com seus abusadores e até mesmo a servi-los. Toda a pressão em torno dos valores cristãos associados ao Natal e ao Ano Novo, como o perdão e o amor incondicional, são responsáveis por coagir a mulher a forçar um bom convívio com alguém de quem ela deveria estar longe, não apenas por questão de segurança, mas também para ter espaço de reflexão. Manter o abusador na vida da vítima a deixa sem escolha nenhuma que não seja reprimir sua dor e naturalizar a violência. Normalizar essa convivência é perpetuar o abuso, mesmo que o agressor nunca volte ao menos a tocar sua vítima. Coagir e submeter uma sobrevivente a se manter tão próxima do opressor é treiná-la para sua futura convivência com agressores, além de ser também parte do aliciamento tanto para um cativeiro que ela definirá como família quanto para a heterossexualidade, imaginando ser esta parte da “natureza sexual feminina”, uma sexualidade natural e instintiva, biologicamente programada, imaginação que ignora o processo de programação servil que a tornou culturalmente condicionada pelos traumas, em contínua posição de vulnerabilidade pelo endeusamento religioso da figura masculina e pela normalização cinematográfica do casal heterossexual.

Em todos esses anos, eu pensei e conversei com outras mulheres sobre agressão, tendo experimentado isso, e há uma forma de culpa que eu acho que merecemos: os cristãos chamam isso de “pecado do orgulho”. O orgulho é que acreditamos que, em prol do amor, podemos suportar qualquer coisa. E nós tomamos uma posição — por causa do orgulho — de suportar qualquer coisa. (DWORKIN, 1992)⁹

Não há momento mais propício para promover o perdão forçado de agressores por parte de suas vítimas do que o Natal, festa cristã, que marca a reunião — religiosamente obrigatória — de toda a família, bem como um período de paz, prosperidade e perdão: distorção psicológica que induz sobreviventes a acreditarem, mais uma vez, que não há escolha senão conviver com seu abusador e apagar seu passado como uma forma de neutralizar a dor. A conivência familiar e social com o contato entre abusador e sobrevivente é a materialização do processo de desumanizar a mulher, provando a ela e endossando a norma patriarcal de que sua segurança e sua integridade — física, moral e psicológica — são menos importantes que o decoro familiar, cuja lógica reside em diferentes formas de naturalização do abuso sexual. Muitas vezes, a vida de uma sobrevivente de abuso por parte de familiares e/ou conhecidos mostra-se tão indiferente à sua família ao ponto de que a manutenção da estrutura familiar seja restaurada a partir de seu total silenciamento.

Quando eu contei pra minha mãe [sobre os abusos que sofri], ela ficou puta; queria matar o homem. Ela contou ao meu pai e ao resto da família. Eu pensei que finalmente eu ia ter justiça, mas, por algum motivo, não aconteceu nada. Nem meu pai fez algo; ele não tirou satisfação, não fizeram nada… Desde então, ele entrou no grupo da família, vai em todas as festas de família… Meu pai convive com ele muito bem, tira fotos, dá presentes, então eu me isolei. Eu percebi que não era importante pra eles, entende? Eu nunca mais fui lá…

- Relato de Julia, mulher lésbica e sobrevivente de abuso intrafamiliar

A proteção do abusador se manifesta de diversas formas diferentes. A nossa cultura transpassa a falsa ideia de que a pedofilia é rechaçada em todas as camadas sociais, mas sobreviventes sabem que isso não é verdade. O falso repúdio, sobretudo aquele que reverbera entre setores conservadores, se traduz numa cortina de fumaça, escondendo o real significado político da pedofilia. Reforçar a ideia de que abusadores pedófilos são como monstros, dignos das mais violentas formas de punição porque “não era um homem de verdade, mas, sim, uma aberração, uma exceção”, afasta suas imagens da realidade material; os desassocia de homens comuns, do cotidiano, e que, na maioria dos casos, são aqueles que compõem nosso núcleo familiar e/ou ciclo de convivência. Assim, quando uma criança ou adolescente sofre alguma forma de abuso e o reporta à família, existe um padrão de respostas que mostram a incongruência do discurso que vilaniza pedófilos: sob lençóis privados, inúmeros motivos ressurgem como maneiras de proteger o abusador, sufocando as narrativas sobreviventes. Dentre eles, o descrédito para com a vítima, tratado-a como mentirosa ou merecedora do que lhe aconteceu, a amenização do ocorrido pela empatia com o “doente” abusador, vítima de seus instintos, a impotência de romper com o agressor (e provedor da casa) perante a dependência econômica, a omissão do abuso para preservar um ente querido: a avó da decepção mortal, o pai da raiva descomunal que o levaria a cometer um ato criminoso, o tio com falsa urgência de justiça… No fim, quaisquer que sejam as desculpas dadas, todas levam à impunidade do abusador e à morte psicológica da sobrevivente.

Por muito tempo eu me perguntei por que eu não tinha contado pra alguém quando era criança, até que um dia eu lembrei: eu não precisei contar. Uma vez, uma das minhas tias pegou ele em cima de mim, ainda no começo, quando eu tinha 6 anos. Eu sempre fui muito “molequinho”, sabe? Sempre fui do grupo dos meninos e brincava com meus primos de lutinha e carrinho, enquanto minhas primas brincavam de casinha. Aos 6 anos, eu me recusava a usar camisa, porque se meus primos não precisavam, por que eu tinha que usar? Nossos corpos eram iguais, não eram? Então, [sobre ele estar em cima de mim], minha tia brigou comigo. A culpa era minha, porque eu ficava no meio dos meninos de short e pernas abertas. Isso foi o suficiente pra fazer com que eu sentisse vergonha e não ousasse contar pra mais ninguém, afinal, a culpa era minha, o que também fez com que ele se sentisse cada vez mais seguro e ousado no que fazia. Ele é meu primo, quase dez anos mais velho que eu. No começo era algo menos perceptível, sabe? Passar a mão por cima da roupa e tal, e depois foi passando para coisas cada vez mais pesadas: oral, inserir dedos, e até penetração… Enfim, durou até meus 12/13 anos. O estranho foi que eu não sabia que tinha sido abusada até fazer 15 anos; meio que isso ficou apagado da minha memória, mas aos 12 anos eu me automutilava muito… tenho as cicatrizes até hoje. Minha mãe descobriu essa automutilação, então eu fui me conhecendo mais e conhecendo o porquê dos meus problemas, o porquê da minha raiva do mundo e agressividade… No final, eu não era uma rebelde sem causa.

Relato de Julia, mulher lésbica e sobrevivente de abuso intrafamiliar

Contudo, mesmo em cenários nos quais existem a ação de afastar o agressor para proteger a vítima ou buscar por justiça, a institucionalização da pedofilia é o outro cenário que leva sobreviventes ao isolamento forçado. O Estado foi arquitetado para proteger agressores sexuais através de leis ambíguas, que abrem precedentes para inocentar acusados, ou mesmo as explícitas, cujas raízes residem em bases pedófilas. A Lei da Alienação Parental, sancionada em 2010, tem agido de forma a hostilizar mães que condenam seus ex-companheiros acusados de abuso sexual, afastar crianças abusadas de suas mães e aproximá-las de seus pais violentos, concretizando um verdadeiro cativeiro sexual.¹⁰ Processos de abuso sexual e estupro de vulnerável passam a ser arquivados quando são respondidos com acusações de alienação parental por parte das mães, humilhadas nas Varas de Família e rechaçadas pela Justiça burguesa e patriarcal.¹¹ Em épocas de final de ano, devido à LAP, muitas crianças e adolescentes passam o Natal com os seus genitores, por mais que existam laudos médicos indicando abusos, como resultado da forçada guarda compartilhada (ou até mesmo, revertida).¹² Se não existe justiça às sobreviventes ou local seguro para que possam viver em paz, nos resta encontrar e formar nosso refúgio que, por estratégia de sobrevivência, deve ser feito de mulheres para mulheres. Se a cultura é responsável pelo aliciamento coletivo de nossas meninas, levando-as a colocar a figura masculina como central em todos os âmbitos de sua vida, bem como teorizou Gail Dines, posicionando-se como o segundo sexo, aceitando migalhas da atenção masculina que receberem, cabe a nós, feministas, proporcionar ambientes seguros a essas meninas, livres das garras de nossos algozes. É urgente que rompamos com o ciclo de abusos, que tem início na socialização feminina, dedicando nossa força, tempo, afeto e energia para mulheres, nos afastando de elementos culturais projetados para nos vulnerabilizar, estabelecendo uma rede mais segura para o desenvolvimento das nossas habilidades e dos nossos relacionamentos intrapessoais.¹³

Em 2017, quando eu tinha 16 anos, minha ex (que sabia da história) foi passar o Natal com a minha família. Ela só foi porque tinha anos que ele não ia nos Natais, só que nesse ele foi. Ela percebeu quem era assim que eu o vi; comecei a tremer, e ele foi até mim e me abraçou. A festa foi horrível, minha ex teve uma crise de pânico porque nunca tinha me visto tão frágil e pequena antes. Logo eu, que não aceitava nada calada e encarava qualquer homem sem medo, estava ali tremendo e com medo, entende? A gente teve que ir embora…

Relato de Julia, mulher lésbica e sobrevivente de abuso intrafamiliar

É imprescindível que sobreviventes apoiemos umas às outras em nossos raciocínios como uma forma de autocuidado e cuidado com as nossas. Precisamos ter a coragem de nomear que a menina abusada pelo próprio familiar hoje é negligenciada pelo seu entorno, forçada a servir o familiar abusador nas festas de fim de ano, será a esposa submissa de amanhã que, por naturalizar o apego a um vínculo traumático, não consegue romper com seu casamento violento. O apego ao vínculo traumático não deve ser entendido como um detalhe na estrutura psicológica da sobrevivente: essa é a força motriz que a conduz a depender emocionalmente de seu carrasco e a ter uma autoimagem completamente distorcida como consequência do processo de destituição de sua humanidade, levando-a a acreditar que ela precisa desesperadamente da aprovação de quem a destrói e, consequentemente, por desprezar a si, a leva também a desprezar suas iguais, dando preferência à figura do dominador em detrimento da figura das dominadas, grupo do qual ela é levada a crer que não faz parte por ter sido “a escolhida” do carrasco. Desde cedo, as meninas são ensinadas que os meninos que as sabotam querem chamar a atenção delas porque na verdade eles gostam delas. O “gostar” de um menino é culturalmente associado a um comportamento sádico — o menino machuca para mostrar que gosta -, enquanto que o gostar da menina é culturalmente associado a um comportamento masoquista — a menina aceita o machucado em troca da “valiosa” atenção masculina. Dentro dessa lógica, sobra pouco ou nenhum espaço para o afeto revolucionário entre “irmãs de cela”. O incentivo social aos vínculos traumáticos criados pela família tradicional, portanto, deveria ser uma prioridade temática nos debates internos do movimento de emancipação de meninas e mulheres, mas a hegemonia não está interessada em priorizar a fuga da sobrevivente de sua condição como cativa: a hegemonia está interessada em defender que a heterossexualidade é apenas uma orientação sexual, não o pilar de exploração capitalista que sustenta a colônia Brasil ao qual chamamos de família. O pensamento tradicional, heterossexualizador, oferece uma barreira à identificação das mulheres consigo mesmas e com suas iguais, obscurecendo as possibilidades de emancipação que só podem ser construídas entre mãos femininas. O pensamento heterossexualizador, por fantasiar uma “natureza heterossexual” da qual seria fatalmente impossível de fugir, faz a emancipação parecer inalcançável. Estar à disposição de um abusador é percebido como um destino no regime político da heterossexualidade.

O que você diria a uma menina ou mulher forçada a servir um abusador nas festas de final de ano? Vou reformular a pergunta para me fazer melhor compreendida: o que essa menina ou mulher precisa ouvir? Quais palavras de incentivo ou de conforto dizer diante de uma situação dessas? O ideal, mesmo, era estarmos constantemente preocupadas umas com as outras para, no mínimo, termos intimidade o suficiente e, a partir dessa realidade afetiva, sabermos os riscos que corremos em nossos espaços privados. Quão amigas temos sido das nossas amigas? Talvez mais importante do que escrever ou ler esse texto seja perguntar a nós mesmas, ao mais profundo do nosso ser, se estamos contentes com a forma que nos relacionamos com as meninas e mulheres ao nosso redor, e como elas se relacionam conosco. Estamos suficientemente próximas umas das outras ou conectadas unicamente por telas que, ao serem desligadas, tornam os vínculos inexistentes? São perguntas importantes de serem feitas porque essas perguntas deslocam a responsabilidade das sobreviventes resolverem sua situação de confinamento com seus abusadores para a coletividade. Como podemos afirmar que lutamos pelas mulheres enquanto mal conseguimos romper com as tradições familiares sustentadas pela exploração feminina? É possível lutar pelas mulheres sem começarmos lutando pela nossa própria autopreservação frente ao extrativismo da família? Como conseguimos sorrir nas festas enquanto vemos nossa classe submetida à servidão pela classe masculina? Queremos nos anestesiar? Podemos pensar em criar alternativas juntas?

Não são poucas as mulheres que não suportam mais fingir que está tudo bem nas festas de fim de ano. Para muitas, banir a si própria da família e buscar apoio em amigas é a única saída para manter a sanidade. Essa fuga não é incomum, embora a força tradicional da manutenção dos vínculos traumáticos seja amplamente difundida e até mesmo obrigatória em muitos casos. As mulheres têm, por estratégia ancestral de sobrevivência, a separação como solução. Por muito tempo, a mulher foi proibida de se separar por lei quando se trata de um casamento, e, moralmente, a separação é condenada pela Igreja até hoje: uma vez pertencente a um homem, a mulher deve permanecer como propriedade. É nítido que, qualquer que seja o tipo de separação, quando a mulher decide separar-se, sua decisão confere a ela uma aura de perversidade. Uma mulher que se separa de seu marido violento e explorador doméstico pode ser considerada uma desalmada que deixou um pobre homem sozinho. Uma mulher que se separa de um pai que abusou dela na infância pode ser considerada uma filha ingrata e negligente. Uma lésbica que se separa de sua família — e da tradição heterossexual — para estar entre outras lésbicas pode ser considerada depravada e ameaçadora. Uma mulher que se separa é uma mulher que descobriu certa intimidade com aquilo que ela é mais proibida de conhecer: seus limites. A partir de seu autoconhecimento e senso de autopreservação, uma mulher pode se tornar inacessível à servidão afetiva, doméstica e sexual que a classe masculina extrai dela. Tornar-se inacessível nem sempre é uma possibilidade imediata, principalmente para adolescentes, para mães solo que dependem da família, para mulheres empobrecidas e racializadas, mas mesmo que o imediatismo seja impossível em muitos casos, que ao menos tenhamos a decência de incentivar meninas e mulheres a destruir os vínculos traumáticos com seus familiares e a buscar outras formas de vínculos, ainda que à longo prazo ou em datas como festas de final de ano. Não permitamos que espaços de alavancamento de consciência pela emancipação da classe feminina sustentem a falsa ideia da inevitabilidade da manutenção dos vínculos traumáticos com a classe opressora. Vínculos heteronormados, ao contrário de inevitáveis, precisam ser apontados como passíveis de destruição. E quando falamos heteronormados, é porque estamos falando não exclusivamente do vínculo romântico e sexual, mas principalmente do vínculo entre homem e mulher marcado pelo signo da propriedade privada. As mulheres precisam ser incentivadas a quebrar suas correntes, não a achar que as correntes fazem parte de sua biologia, porque não fazem. Não está na biologia da mulher o destino de ser explorada nas festas de fim de ano. A biologia e a natureza não são as algemas das mulheres: a cultura masculinista que naturaliza a ideia da mulher como auxiliadora do homem e a ele submissa é que são as algemas da mulher. As definições masculinistas que associam a capacidade reprodutiva das mulheres à submissão feminina são desculpas mentirosas criadas por senhores para sustentar as fantasias dos senhores.

A narrativa de que a “natureza da mulher” é mais sensível, mais doméstica, de que a mulher encontra satisfação e realização na satisfação e realização do outro — seja um filho, um marido ou um namorado -, no sacrifício de sua força vital pelo bem coletivo — da família, da Igreja, de um partido -, é uma fantasia que deturpa a natureza humana para beneficiar a classe dominante com o poder de separar e classificar a classe dominada. Dessa forma, a mulher é colocada romanticamente no papel de doadora ilimitada de vida, é desumanizada, destituída de sua força de trabalho para servir a um projeto masculino de sociedade. O discurso de que a mulher é auxiliadora do homem e não protagonista de sua própria história é um projeto masculino de dominação: quem não se lembra do bispo Macedo dizendo que a mulher não deve fazer faculdade pois o cabeça da família é o macho, o varão? Essa ideologia, por ser discurso base de um fundamentalismo religioso que se fortalece na miséria e na esperança de um futuro mais próspero, encontra nas periferias o lugar perfeito para ser proferida como verdade. O encontro entre as “missões de salvação” que lotam as periferias de igrejas e a socialização feminina para a doação ilimitada de energia vital age como uma bomba sobre o raciocínio das mulheres periféricas. Isso significa que mulheres empobrecidas e racializadas, maioria das mulheres nas periferias, se encontram em uma guerra psicológica que muitas vezes é inimaginável para feministas de Academia acostumadas a não ter como obrigação cozinhar a própria comida e limpar a própria privada. O sentimento de dívida que a Igreja e os homens suscitam nas mulheres desde quando elas ainda são meninas é incompreendido pela maioria de nós. Uma mulher que foi convencida de sua inferioridade sexual ou racial é forçada a agradecer ao seu carrasco doméstico por ter alimento para si e para seus filhos, por exemplo, e considera a violência doméstica e o estupro como parte natural da vida de uma mulher. Todo carrasco doméstico, seja ele branco, preto ou indígena, se beneficia da fantasia de que a natureza da mulher é viver para maternar e proporcionar prazer e bem-estar aos homens.

Para mulheres racializadas, a imposição da figura da mulher como aquela que materna e cuida é ainda pior, pois carregam consigo as próprias dores do racismo e as dores e traumas intergeracionais do racismo sofrido por seus familiares, um fator determinante para a dificuldade em romper com vínculos com homens negros ou indígenas que exploram sua mão-de-obra ou as violam sexualmente. O comportamento maternal das mulheres condicionadas ao sacrifício já é complexo por si só, portanto, carregar esse condicionamento repleto de culpas e sentimentos de dívidas com relação à classe masculina somado à identificação legítima das mulheres racializadas com as dores masculinas causadas pelo racismo em homens indígenas e negros é uma tortura que precisa ser combatida. A pergunta importante a ser feita é: qual a diferença entre uma mulher de classe média ou alta que “contrata” uma mulher racializada para aliviar a si mesma e ao seu opressor na realização das tarefas domésticas ou cuidados infantis e um homem racializado que explora domesticamente a própria esposa na periferia? Um salário? Ambos se beneficiam da condição de maternagem para a qual a mulher racializada foi empurrada pelo colonialismo. Esse é o principal entrave à prática feminista no Brasil, pois as mulheres brancas com poder econômico tendem a se livrar de sua própria opressão sobrecarregando mulheres racializadas: querer igualdade com o homem é querer ter o direito de explorar outras mulheres. Prática feminista é sobre abolição e não sobre aquisição de poder às custas das mais vulneráveis. Muitos relacionamentos heterossexuais acabariam se os casais não tivessem uma “empregada” para tirar as tarefas domésticas da lista dos problemas de relacionamento. A questão é: por que as mulheres com poder econômico têm aceitado se relacionar com homens que se negam a dividir as tarefas domésticas e ainda assim têm se nomeado como feministas? A heterossexualidade é o pilar da tradição da família e esse pilar precisa ser questionado pelo seu poder de transformar mulheres em propriedades dos homens e de inviabilizar a identificação entre as mulheres.

As mulheres racializadas são as mais sobrecarregadas. Nas festas de Natal e Ano Novo, elas são a maioria daquelas que têm de abrir mão de seu convívio familiar para sustentar a festança das famílias para as quais trabalham. Assim, quando têm a oportunidade de se reunir com a própria família durante as festas, pensar na situação de exploração doméstica ou de exposição a abusadores é algo distante. Nessa época do ano, a mídia promove a romantização dos vínculos familiares, de modo que se reunir com estas pessoas é entendido como o normal e desejável. Desejando, portanto, pertencer à normalidade por já estar inserida em uma lógica de marginalização, a mulher racializada é empurrada para um lugar de força emocional que a anestesia e coloca seus sentimentos, memórias e dores em segundo plano: importante é a festa acontecer e ela ser uma “boa anfitriã”, pois essa é a tradição que em muitos casos é negada às mulheres racializadas, então o direito ao convívio familiar no Natal e no Ano Novo são entendidos como uma conquista. Isso não significa, porém, que mulheres racializadas não podem se separar da própria família nesses momentos, rompendo com a exploração doméstica e com seus abusadores, muito menos que não devem ser incentivadas a essa separação. Muito pelo contrário: levar em conta a maior complexidade que envolve essa separação para as mulheres racializadas é um passo importante para impedirmos que as mesmas sejam colocadas pela branquitude em um lugar em que elas participam da própria opressão. Ao assumir a complexidade que a maternagem obrigatória ocupa na vida das mulheres racializadas, o discurso feminista pode servir como um pontapé para o rompimento com esse lugar. A mulher racializada pode e deve ser incentivada a priorizar a si, negando seu afeto e serviços aos homens, mesmo os de sua família, principalmente aos seus abusadores.

O rompimento com homens, à primeira instância, pode parecer utópico, levando em consideração que a sociedade capitalista é dividida em classes, agregando homens e mulheres sob condição exploratória. Existe a ideia em espaços anticapitalistas que, como ambos são levados a vender sua força de trabalho numa tentativa constante de sobreviver, sem escolhas senão ser parte ativa da manutenção do sistema socioeconômico, homens e mulheres devem se unir para romper com a classe burguesa. Mesmo que o patriarcado tenha sido reincorporado pelo sistema capitalista, dinamizando a exploração sexual como uma ferramenta direta de lucro, homens e mulheres são objetos distintos do capitalismo. A hierarquia de gênero é uma dinâmica de opressão presente em todas classes sociais, reforçada pela disposição do gênero como complementares entre si para perpetuar a dialética dominante-dominada, dando continuidade ao próprio sistema. Contudo, a opressão feminina e o racismo estão presentes na classe trabalhadora, em espaços “revolucionários”, cuja presença masculina e branca marca a ferro quente os resquícios da socialização de homens. Mulheres lésbicas têm estado na linha de frente do rompimento com a classe masculina; se por um lado, essas mulheres se isolam entre si para escapar das entraves masculinas e priorizar as suas iguais, por outro, lésbicas são dizimadas e massivamente hostilizadas.

Depois que contei à minha mãe que sou lésbica, minha vida virou um inferno dentro de casa. Querendo me “punir” ou me fazer sofrer, ela não me deixava mais comer nada em casa. Quando ela fazia almoço ou janta, ela fazia o suficiente pra mim e pro meu irmão mais novo. Às vezes quando sobrava eu comia, mas ia pra varanda comer para evitar os olhares de condenação, de desprezo. Ela gritava e me humilhava na rua na frente das pessoas. […] No início de 2020, ela meio que cansou de mim, porque eu já não fazia mais questão de esconder minha sexualidade pra família, e causava vergonha a ela. Então ela disse que já estava na hora de eu caçar meu rumo, mesmo sem emprego e sem perspectiva. […] Após mudar de casa algumas vezes, vim morar com o meu amigo e sua mãe, e eles me acolheram muito bem, mas eu estou sem emprego e morando de favor, não posso voltar pra casa porque minha mãe cortou laços comigo e não quer me ver nunca mais. E tem meu irmão adotivo mais novo, que eu sou proibida de ver, então eu tenho que dar um jeito de ver ele de longe. Hoje em dia eu não tenho tanto contato com meus familiares, por que todos pensam (…) que vou acabar que nem minha mãe biológica, drogada e bêbada. Todos eles me condenam, então sinto que não passam de parentes, apenas.

- Relato de Maria, mulher lésbica e vítima de abuso psicológico e lesbomisoginia. Banida do meio intrafamiliar por conta de sua sexualidade

A mulher lésbica, sobretudo a desfeminilizada, ao negar o acesso masculino ao seu corpo, propõe uma estratégia revolucionária de negar diariamente o pacto que é feito entre Igreja, Estado e grandes corporações, que visam o controle de seu corpo e da sua reprodução. Um dos principais motivos pelo qual mulheres lésbicas são odiadas é porque ensinam a nos odiar, uma vez que não somos úteis ao projeto masculinista patriarcal, e negar o potencial revolucionário da mulher lésbica é compactuar com violências tramadas contra mulheres milenarmente. Ignorar o potencial lesbiano em qualquer mulher significa compactuar com o discurso biologizante que nos acorrenta aos nossos algozes, normalizando a misoginia como um aspecto natural e inato da sexualidade humana (afinal, a heterossexualidade é projetada em cima da hierarquia de gênero). É urgente que reconheçamos o potencial revolucionário da classe feminina, inclusive na luta anticapitalista, a partir da difusão da nossa versão da narrativa histórica: a versão dos corpos colonizados por e para homens. É imprescindível que iniciemos um trabalho de base fundado nos nossos interesses, conscientizando mulheres e chamando-as para se unir à luta coletiva feminista, contra o sistema que compra nossa mão-de-obra por vislumbres de uma vida à mercê masculina. Mas, antes de tudo, precisamos garantir a nossa sobrevivência, exterminada por homens historicamente, a níveis privados e institucionais. Temos que unir nossas forças para nos proporcionar espaços lesbocentrados, seguros a mulheres e crianças, priorizar outras mulheres e consolidar nosso intelecto em direção à construção de uma linha revolucionária matriarcal.

Eu entendi que eu não precisava me sentir um lixo por ter uma mãe lesbofóbica, que eu não precisava me esforçar pra ter atenção de um pai pedófilo (embora nunca tenha abusado de mim, dizia com tranquilidade sobre as meninas de 13 anos que ele, nos seus 50, se relacionava). Eu só precisava cuidar de mim. Nada daquilo era minha culpa, nunca me foi dada a escolha de quem seriam os meus genitores. E agora eu, crescida, pagando minhas próprias contas, deveria me localizar no mundo de uma outra forma, deveria me bastar, e estava tudo bem, porque solidão nenhuma pode ser pior do que a negação ou ofensa àquilo que se é. Descobri a vastidão das relações interpessoais que não são impostas. O valor que se dá àquelas que estão do nosso lado sem a obrigação de estar, mas porque se afeiçoam, porque partilham dos mesmos ideais, porque sofrem das mesmas dores ou correlatas, porque buscam as mesmas respostas, porque estão dispostas a batalhar por si e por ti. Isso me interessa muito mais. Hoje estou prestes a me casar, já morando com minha noiva, sendo sócia de uma empresa com minha noiva, tendo o combo cachorra-gatos-rata com ela, e tendo a sorte de aprender com ela o que é uma família. Seja pela família dela nos aceitar incondicionalmente, seja por nós mesmas sermos uma família legítima, lutando pelos nossos direitos em todas as esferas possíveis, até o fim.

- Relato de Carolina, mulher lésbica e vítima de lesbomisoginia e terror psicológico. Se autobaniu de sua família, escolhendo lesbocentrar.

Por fim, levando em consideração cada um dos pontos abordados até agora, a Sangra Coletiva incentiva mulheres a romper com tudo o que nos acorrenta ao papel de servidão e passividade que somos sentenciadas a cumprir. Nos afastar daqueles que foram e são agentes da violência que sofremos, impedindo que tenham acesso aos nossos corpos e às nossas mentes, pode ser um primeiro passo. Sendo assim, convidamos todas, sobretudo as sobreviventes, a subverter uma tradição que, anualmente, é responsável por nos arrastar de volta às raízes de nossos traumas. Entretanto, compreendemos que, para muitas, essa escolha não é tão fácil de ser colocada em prática, principalmente para as mais jovens e as que moram com a família. Sendo assim, sugerimos ir para a casa de uma amiga ou até chamá-la para passar o feriado com você, sendo essa uma estratégia para que pelo menos vocês possam ficar mais confortáveis e à vontade. Mesmo para aquelas que têm a possibilidade de estar sozinhas, confraternizar com amigas, ainda que por chamada de vídeo, pode ser uma boa alternativa, substituindo assim o vazio deixado pela perda do sentido de uma festividade que não deve ser romantizada por uma oportunidade de estreitar o laço umas com as outras. O Natal e o Ano Novo, para muitas de nós, são apenas datas marcadas para que apresentemos uma performance que demonstre aos nossos abusadores que estamos sob controle. Perpetuar esses encontros serve apenas para que sintamos que vale muito a pena engolir nossa dor até sufocar. Sobreviventes abrem mão de muita coisa quando se convencem que devem desistir de si mesmas “por amor”, mas é justamente esse grito que tanto abafamos que tem a potência para nos libertar. Nesse ano, e também nos próximos, se possível, esteja longe do seu abusador e de qualquer pessoa que o ajude a manter seu silêncio, também dê preferência à companhia de suas amigas. Permita-se entrar em contato com tudo o que te foi negado pensar, sentir e expressar. A força para romper com seu abusador está na validação da sua dor. Decidir se acolher ao invés de se forçar a engolir o choro mais uma vez pode te sustentar não apenas na decisão de romper com as tradições familiares no fim do ano, mas no processo de abandonar regras que essa instituição te ensinou a acatar em todos os dias de sua vida.

Convite para uma chamada de Natal e Ano novo:

Para diminuir a nossa distância, integralizar laços com quem nos acompanha e proporcionar um espaço de acolhimento para sobreviventes e outras mulheres, vamos criar reuniões de videochamada nas vésperas de Natal e Ano Novo . O nosso objetivo é conversar, interagir e propor alternativas para comemorar essas datas com outras mulheres. As datas das reuniões serão nos dias 24/12 e 31/12, às 21h via Google Meet. Os links de acesso serão disponibilizados nas nossas redes sociais (@sangracoletiva) no dia de cada reunião às 20h. Contamos com sua presença!

Sobreviventes sangram. Sobreviventes se curam juntas.

Nathália Gouveia| integrante da Sangra Coletiva

Pixie| integrante da Sangra Coletiva

Natacha Orestes | integrante da Sangra Coletiva

Referências bibliográficas:

¹ FEDERICI, Silvia. Salários contra o trabalho doméstico, 1974.

² Agência de Notícias do IBGE. Dados de 2019.

³ HARAWAY, Donna. O humano numa paisagem pós-humanista. 1993.

⁴ GUZMAN, Adriana. El patriarcado. Entrevista de 2014.

⁵ Instituto Patrícia Galvão. Dados sobre violência sexual contra crianças e adolescentes levantados entre 2011 a 2017.

⁶ GRAHAM, Dee L. R. Loving to survive: Sexual terror, men’s violence, and women’s live. 1994.

⁷ DINES, Gail. Pornland: how porn has hijacked our sexuality. 2010.

⁸ GOUVEIA, Nathália. Sexualização da infância e a luta antipedofilia. Live com a Sangra Coletiva de 2020.

⁹ DWORKIN, Andrea. Liberdade AGORA!, discurso de 1992.

¹⁰ Para entender mais sobre a Lei da Alienação Parental, confira nossos outros textos no Medium: Os corpos das meninas e mulheres sob o domínio masculino é institucionalizado e Liberdade sexual para todos? — uma análise antipedofilia

¹¹ Para entender mais sobre como a Lei da Alienação Parental é aplicada na prática, confira nossa live com a Sibele do Coletivo Voz Materna.

¹² Para conhecer as histórias reais de mães vítimas da Lei da Alienação Parental, confira nossa live com três mães julgadas como alienadoras por genitores pedófilos.

¹³ RICH, Adrienne. Heterossexualidade compulsória e existência lésbica. 1980.

--

--

Sangra Coletiva

Sobreviventes sangram. Sobreviventes se curam juntas. São Paulo — SP