Acesse na íntegra a carta-relatório sobre custódia e família que a Sangra Coletiva submeteu à relatora especial sobre violência contra mulheres da ONU, Reem Alsalem
No mês de dezembro de 2022, as Nações Unidas abriram um canal para que organizações brasileiras submetessem relatórios com dados sobre a realidade jurídica das famílias no país, especialmente sobre a aplicação da Lei da Alienação Parental.
Por ser o Brasil signatário de pactos internacionais pela erradicação da violência contra meninas e mulheres, em especial da Convenção pela Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher, o Estado é aconselhado e pressionado internacionalmente pelo CEDAW/ONU a criar mecanismos de proteção à classe feminina. A Lei Maria da Penha, por exemplo, foi uma medida que o Brasil foi obrigado a adotar como consequência de sua omissão perante a garantia dos Direitos das Mulheres.
Pensando nisso, à convite do Coletivo de Proteção à Infância Voz Materna, o primeiro no Brasil a se articular internacionalmente via CEDAW/ONU para denunciar a violência do Estado contra as mulheres-mães e crianças brasileiras, a Sangra Coletiva produziu o relatório abaixo.
Autoria do documento: Ruana Castro
Tradução para o documento final, enviado em inglês:
Ana Luisa Suman de Azevedo Buontempo
Monise Santos de Souza
Bia V.
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- Embasamento da Lei de Alienação parental
A Síndrome da Alienação Parental (SAP) é uma suposta “síndrome” criada em 1985 pelo perito Richard Gardner no contexto pós guerra do Vietnã a fim de solucionar de maneira “fácil” um difícil problema: a guarda de filhos no pós-divóricio. Gardner criou a SAP como um álibi para a defesa de ex-combatentes acusados de violência doméstica, de modo a desacreditar as vítimas e inverter os papéis com o agressor. Gardner trabalhou grande parte de sua vida em casos envolvendo pedofilia, porém não era médico ou ligado aos estudos de psicologia, se autopublicando em websites e em editora própria.
Essa “síndrome” anticientífica rapidamente se espalhou como “tese” para apoiar peritos e juízes em decisões nas varas de família, embora tenha sido rejeitada em países como EUA por ser considerada falaciosa. A SAP pressupõe que no processo de litígio conjugal por ressentimento de ser “abandonado” um dos genitores se vinga do ex-companheiro através dos filhos, manipulando-os para que odeiem o outro genitor. Nesse processo o genitor que possui a guarda dos filhos impede o contato entre as partes (filhos e pais que não tem a guarda), sendo assim o genitor restrito do convívio paterno/materno é “alienado”. Desse modo o genitor (na maioria das vezes pai) “alienado” afirma que a criança foi “programada” para negá-lo.
2. SAP e o Backlash
Na prática a SAP e a LAP se propõem a desqualificar relatos de violência sexual de mulheres e crianças pressupondo que crianças naturalmente mentem e são manipuláveis e as mães são manipuladoras. O que esse fato encobre é a impossibilidade de vítimas de violência doméstica e sexual denunciarem seus agressores pois seus relatos serão desacreditados pela existência da Lei. Gardner afirma que a SAP é uma espécie de programação psicológica, ou “lavagem cerebral”, na qual o genitor que está “se vingando” (o alienador) manipula os filhos em favor de suas próprias demandas para que odeie o genitor “alienado” (o que pode se estender a outros membro da família) através de uma campanha de desqualificação de seu caráter que leva ao desprezo do mesmo e quebra do vínculo entre genitor e filho. Em um dos textos que a lei se baseia: “Síndrome de Alienação Parental, o que é isso?” de Maria Berenice Dias, cofundadora do Instituto brasileiro de direito de família (IBDFAM), fica claro que a SAP visa atingir notoriamente mulheres, quando afirma que “são vingativas”, “se sentem rejeitadas, abandonadas após a separação”, ou seja, o ensejo da lei é o estabelecimento jurídico das “mães Medéias” (ENZWEILER, 2014). Um ponto importante aqui é que a SAP supõem que não existe motivação para que a criança evite o contato com o genitor “alienado” para que seu desprezo seja justificável, assim não existe investigação quanto à veracidade de denúncias.
“Tem sido denunciado, nos EUA, que a teoria de GARDNER, fazendo crer que se verifica uma epidemia de denúncias falsas de abuso sexual de crianças, nos processos de divórcio, ao contrário do que indicam os estudos sobre o tema, e tornando patológico o exercício de direitos legais por parte da mulher que defende os seus filhos, contribuiu para a desvalorização da palavra das crianças e para a invisibilidade da violência contra mulheres e crianças, assumindo um significado ideológico muito claro: a menorização das crianças e a discriminação de género contra as mulheres. ” (SOTTOMAYOR 2011)
Um ponto muito importante da LAP e da SAP é a questão da “implantação das falsas memórias”, uma vez que em processos de AP é muito comum que surjam acusações de violência sexual contra os genitores “alienados” que são compreendidas então como “falsas denúncias” e parte da “campanha de desqualificação” do genitor vingativo. Destaco aqui que o genitor “alienado” afirma que o “alienador” implanta nos filhos falsas memórias de abuso sexual através da ”programação”, o que na realidade é desmentido pelo Boletim Epidemiológico de 2018 que revela que os as famílias podem ser um espaço perigoso de violação dos direitos das crianças, somando quase 70% de casos de violência sexual ocorrida nos lares e que casos de falsas denúncias de violência sexual não passam de 2% dos casos.
3. A influência da SAP nas disputas de custódia
Apesar dos esforços de Gardner em provar sua tese, a SAP não tem validade científica, uma vez que ela não passou por revisão por pares, ou mesmo pode ser testada; ela se limita a descrever o “fenômeno”, no entanto o diagnóstico é circular e não comprova a própria tese. Sendo assim a SAP nunca foi catalogada no Manual de Diagnósticos de Transtornos Mentais (DSM-IV) da Associação Americana de Psiquiatria, ou seja, de fato nunca foi reconhecida como uma síndrome real, embora seja utilizada por psicólogos e juristas para embasar decisões legais sobre guarda; um dos argumentos para sua negação se dá “em razão da provável utilização maliciosa de seu diagnóstico junto a processos judiciais que possuem alto grau de litigiosidade entre as partes.” (ENZWEILER, 2014)
Em trabalho publicado em 1992, intitulado “True and false accusations of child sex abuse” Gardner publica acusações misóginas, relatando que mulheres são naturalmente irracionais, o que geraria para crianças situações de risco e retrocesso nos direitos dos mesmos. Além disso ele normaliza a pedofilia como potência sexual de reprodução da espécie humana, o que sugere que mulheres e crianças são meros objetos sexuais a serviço da reprodução, ainda que isso signifique tolerância ao abuso sexual.
(…) tendo feito afirmações públicas no mesmo sentido, divulgadas pelo Independent: «A pedofilia, acrescentou GARDNER, “é uma prática generalizada e aceite entre literalmente biliões de pessoas”. Interrogado, novamente, por um entrevistador sobre o que devia fazer uma mãe, se a sua filha se queixasse de abuso sexual por parte do pai, Gardner respondeu: “O que deve ela dizer? Não digas isso sobre o teu pai. Se o disseres, eu bato-te”. (SOTTOMAYOR 2011)
Gardner defendia que houvesse uma iniciação sexual da filha por parte do pai, uma vez que sua sexualização torna possível o anseio da criança a outras experiências sexuais, sendo assim o abuso estimula a procriação, o que segundo ele torna a pedofilia “parte do repertório natural da raça humana”. Segundo ele o possível sofrimento que as vítimas pudessem ter dos abusos na realidade existem apenas por causa do estigma em torno da pedofilia: “O determinante acerca de saber se a experiência será traumática é a atitude social em face desses encontros” (SOTOMAYOR, 2011). Essa visão acerca de abusos sexuais nega o sofrimento das vítimas, além de prejudicar a longo prazo o desenvolvimento das crianças. A “tese” de Gardner se assenta nas bases de uma sociedade patriarcal que define mulheres e crianças como propriedades masculinas, sendo assim o homem é em absoluto chefe de família e quem tem pátrio poder em seu núcleo; é negado o direito à autonomia aos demais membros da família, submetendo-os à violência doméstica.
Entre as proposições da LAP como sanção ao “alienador” está a possibilidade de haver reversão de guarda e proibição de contato entre a criança e o “alienador ”; tal proposição da lei nada mais é do que uma “tese” gardenista que o próprio criador chamava de “Terapia da ameaça”, que visava “desprogramar” ou “reverter” a pretensa “falsa memória” infligida à criança, forçando-a conviver com o genitor “alienado”, o que nos casos de violência sexual e doméstica coloca a criança em risco nas mãos do abusador e longe do genitor protetor. É importante salientar que essa reversão de guarda é prejudicial à criança e ao genitor, uma vez que os deixa vulneráveis, como ocorreu no México onde a lei foi revogada:
“No México aconteceu um suicídio coletivo porque o juiz entregou os filhos ao suspeito de abuso sexual. A família toda se matou. O que aconteceu em seguida? A lei foi revogada. No Brasil, nós já temos casos de suicídios de mães que denunciaram abuso sexual e perderam a guarda de seus filhos. E a nossa lei continua em vigor.” (BRASIL, 2019)
Embora países como Espanha, Portugal e Inglaterra rechacem a SAP, além do México que já revogou seu uso, seguindo as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), APA — American Psychological Association, a Associação Americana de Psiquiatria e a AEN — Asociación Española de Neuropsiquiatria, que rejeitam a “tese” de Gardner, o Brasil caminhou na mão contrária da ciência e promulgou a Lei 12.318 em 26 de Agosto de 2010, advinda do PL 4053 do ano de 2008 pelas mãos do Deputado Federal Regis de Oliveira do Partido Social Cristão — PSC, a Lei de Alienação Parental. Na ocasião de aprovação da Lei o Senado publicou um texto no qual afirmou uma “crescente onda de falsas denúncias de abuso sexual contra pais”, uma vez que a guarda geralmente é concedida às mães, o que deixa claro o tom misógino da lei e a negação das estatísticas de violência. O texto afirma nas palavras da vice-presidente do IBDFAM Maria Berenice Dias, uma das primeiras relatoras de processos envolvendo a AP, que embora faltem estatísticas, ou seja, não há comprovação: “há pelo menos cerca de 30% de casos de SAP’’. Como afirma ENZWEILER (2014):
(…) não se pode perder de vista que a afirmação fundante da teoria de Gardner (de que as acusações maternas de abuso sexual praticado pelo genitor são, em sua maioria, falsas) não encontra amparo em nenhuma evidência científica. Pelo contrário, conforme demonstram Jones & McGraw, falsas denúncias de abuso sexual ocorrem em não mais do que 2% dos casos.
Atualmente no Brasil os gardenistas tem tido por objetivo a dissociação entre a LAP e Richard Gardner, uma vez que há diversas recomendações a respeito da revogação da mesma; entretanto a própria PL geradora dessa aberração jurídica afirma a necessidade do uso da “tese” da AP, além de citar seu autor como embasamento para a referida lei: “A este processo o psiquiatra americano Richard Gardner nominou de “síndrome de alienação parental”: programar uma criança para que odeie o genitor sem qualquer justificativa.” (BRASIL, 2008)
- A SAP na justiça brasileira
Algumas pesquisas realizadas pela justiça brasileira buscaram investigar “casos verdadeiros” de alienação parental após denúncias e constatou em momentos diferentes um baixo percentual “real” de “alienação”, cerca de 0,15%: “mas, pelos relatórios psicossociais produzidos, nenhum deles confirmou a existência do fenômeno” (BRASIL, 2020). Essa conclusão sugere que a “alienação parental” não se trata de uma epidemia, mas de um discurso lucrativo, ao patriarcado e ao sistema judiciário.
Muito embora haja tantas evidências da inexistência da tese da “alienação parental” a justiça brasileira trabalha com a SAP nas varas de família de todo o país e arrisca a vida de crianças nas mãos de agressores, como foi o caso da menina Joanna Marcenal: a menina foi afastada do convívio (já escasso) com o pai após a comprovação de abusos físicos; a partir da LAP o pai conseguiu na justiça a reversão da guarda e que a mãe fosse afastada da menina por 90 dias. Diante dessa situação a criança esteve vulnerável por 26 dias nas mãos do pai e madrasta sendo agredida, segundo testemunhas, até que infelizmente foi acometida por meningite e faleceu em decorrência de maus-tratos. Em entrevista à Revista Istoé, a mãe se revolta: “Não ouviram a Joanna, não ouviram minha família, só os pais dele e a mulher dele.” (…)“Joanna foi vítima do Judiciário. A juíza a tirou de dentro de casa e entregou-a para ser morta”. (LOBATO, 2020)
Conclusão
Sabendo que entre 2011 e 2015, logo após a Lei da Alienação Parental ter sido aprovada, 13% das gravidezes provenientes de estupro de vulnerável tiveram os próprios pais das jovens violadas como perpetradores da violência incestuosa que resultou na gestação, a Sangra Coletiva conclui que a Revogação da Lei da Alienação Parental é uma das estratégias que precisam ser adotadas pelo Brasil para impedir que pais incestuosos tenham o direito de tornar suas próprias filhas, escravas domésticas e sexuais, forçando-as a um casamento infantil informal.
Referências
BRASIL, Câmara dos Deputados. “Debatedoras defendem revogação da Lei de Alienação Parental.” Fonte: Agência Câmara de Notícias. In: https://www.camara.leg.br/noticias/561422-debatedoras-defendem-revogacao-da-lei-de-alienacao-parental Acesso em: 18/11/2022
_____. Câmara dos Deputados, PROJETO DE LEI N 4.053, DE 2008.
_____, Código Civil de 1916, capítulo II “Dos Direitos e Deveres do Marido” , artigo 233.
_____, Defensoria pública do Estado de São Paulo, Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher. Assunto: Análise Da Lei Federal 12.318/2010 Que Dispõe Sobre “Alienação Parental”, Nota Técnica Nudem Nº 01/2019.
_____, Ministério Público Federal Procuradoria Federal Dos Direitos Do Cidadão. Projeto De Lei No Senado Nº 498/2018, Nota Técnica Nº 4/2020/PFDC/MPF
ENZWEILER, Romano José & FERREIRA, Cláudia Galiberne. “Síndrome Da Alienação Parental, Uma Iníqua Falácia”. REVISTA DA ESMESC, v. 21, n. 27, 2014
LOBATO, Eliane. “As várias tragédias de Joanna”. Revista Istoé — Comportamento. Em: https://istoe.com.br/96766_AS+VARIAS+TRAGEDIAS+DE+JOANNA/ Acesso em: 18/11/2022
SOTTOMAYOR, “Uma análise crítica Da Síndrome de Alienação Parental e os Riscos da sua utilização nos tribunais de família”. Coimbra Editora ® JULGAR — N.º 13–2011