A Organização Política

Sangra Coletiva
6 min readAug 19, 2020

--

A destruição é necessária para se organizar.

#8M da Sangra Coletiva — São Paulo — SP

As mulheres são acostumadas compulsoriamente desde meninas a estarem organizadas apenas em espaços domésticos. Até os dias de hoje o campo de batalha de muitas meninas e mulheres é o espaço doméstico. Quando meninas e mulheres conseguem fugir desses espaços para promover encontros em locais públicos e passam a se organizar politicamente, por diversas razões isso não faz com que toda a socialização aprendida e reforçada no espaço doméstica se exima.

Como vítimas de uma socialização perversa que apresenta o trabalho doméstico como a única tarefa da mulher, quando entramos no processo de organização política ficamos um tanto que perdidas em como fazer e em como agir. Daí damos conta da expectativa x realidade.

As mulheres são o grupo mais vitimado pela opressão sexista. Tal como outras formas de opressão em grupo, o sexismo é perpetuado por estruturas sociais e institucionais; por indivíduos que dominam (entende-se homens), exploram ou oprimem; e pelas próprias vítimas, socializadas para agir em cumplicidade com o status quo.

Quando essas mulheres começam a se organizar, começam a se dar conta que muitas coisas ainda precisam ser destruídas, principalmente em nós mesmas enquanto indivíduos. A ideologia supremacista masculina encoraja a mulher a não enxergar o valor em si mesma, a acreditar que ela só adquire algum valor quando há o intermédio do homem. Por isso uma das maiores armas masculinistas é nos ensinar que somos “inimigas naturais” umas das outras, que a coletividade entre mulheres nunca será possível porque não sabemos e nem devemos lidar umas com as outras. E tudo isso foi muito absorvido entre nós mulheres.

Daí começam a conflitar com figuras mais ativas dessa possível organização e passamos a reforçar que a organização entre mulheres é algo impossível, assim como homens educaram por serem sujeitos dominantes.

É comum que dentro de movimentos de esquerda, sendo ele de extrema ou não, ouvir o discurso de que deve haver horizontalidade dentro de qualquer movimento, principalmente naquele de mulheres, por uma coisa óbvia, somos mulheres.

Mas esquecem que o caminho para alcançar essa horizontalidade é longo, e diante disso, aparecem figuras de extrema importância que podemos entender como líderes; são as mulheres que por maiores experiências, por terem mais desenvoltura diante de tais situações, por conseguirem tempo, por terem mil e uma qualidades que podem colaborar com essas organizações, acabam de forma orgânica sendo líderes, por isso é importante trazer a figura da líder para frente e diferenciar da figura autoritária, nós mulheres sabemos diferenciar o que é liderança e o que é autoritarismo. Autoritarismo não pede sugestões; uma líder propõe diálogos para que melhor se organize o grupo de tarefas — pois coletivas são grupos de tarefas, logo força de trabalho organizada que resulta no trabalho conjunto/coletivo.

É preciso entender também que nunca foi dado à mulher uma educação para que ela se veja como líder, para que ela tome espaços e usufrua de toda sua experiência, pois liderança sempre foi atribuída aos homens, seja em espaço privado , como “o homem da casa” ou em espaços públicos. Logo, há também um medo daquela mulher que organicamente foi se vendo como líder, há um incomodo, porque essa figura de liderança sempre estará atrelada à figura de poder masculina, inerentemente autoritária, por isso é preciso ter clareza de que lideranças se fazem necessárias para a troca de experiências, e para que as mulheres se vejam sendo líderes em espaços públicos, para além de organizações promovidas apenas para com mulheres.

Mas há um porém diante disso tudo, a maternidade compulsória, pois quando dizemos que mulheres são socializadas, isso fica ainda mais claro no momento em que nos organizamos em coletivas. Sabe a figura da líder? Muitas vezes ela acaba tendo que se desdobrar para tampar todos os buracos que as demais integrantes ativas do grupo não conseguiram dar conta e isso colabora com a exaustão e exploração daquela força de trabalho; não podemos deixar que trabalhos envoltos à coletiva caiam na invisibilidade, da mesma forma que acontece com trabalho doméstico, e é por isso que devemos entrar em constantes processos de autocríticas e de críticas.

Quando essa mulher se coloca numa situação de “mãe”, como por exemplo, ter que cobrar do grupo tarefas que já foram decididas em reuniões ou em assembleias, mostra-se que a produtividade está com rupturas e que vai sobrar para alguém suprir a demanda e, geralmente, esse alguém é quem foi adotada como “mãe” compulsoriamente. Ou seja, mulheres também podem acabar reproduzindo dentro de espaços feministas a maternidade compulsória em outras mulheres; e essa mulher por ser entendida assim e por ser socializa assim, antes mesmo de estar dentro de uma organização, acabará se vendo pressionada a fazer o que não está sendo feito. Isso parece muito com o trabalho doméstico que é invisibilizado por todos, inclusive por quem mora junto com aquela mulher.

Dentro desse porém, também aparece uma das diversas facetas da nossa socialização, a rivalidade feminina. De fato, ela existe em cada uma de nós, em cada mulher, é ela que nos encoraja a não acreditar umas nas outras e, assim, também nos subestimar enquanto sujeitos. Pois quando apontamos o dedo para uma mulher, esquecemos que a supremacia masculina paira sobre todas nós e é essa supremacia que ganha pontos quando nos atacamos de maneira punitivista. No mesmo sentido, é importante deixar claro que a rivalidade feminina pode ser desconstruída, a partir do momento que decidimos aceitar que ela é posta como uma regra em nossas vidas, partindo de um ponto totalmente individualista; porque para a revolução, o primeiro passo quanto a isso, vem de dentro, e consequentemente acontece o processo de destruição desse sentimento compulsório em nós, para assim conseguirmos olhar para outras mulheres de formas diferentes, assim como para nós mesmas.

Outro ponto importante é diferenciar o que é crítica política construtiva do que é rivalidade feminina; uma coisa é alguém agir de maneira sistemática visando te abalar de maneira individual (lembre-se que rivalidade feminina está em todas nós), já outra coisa é aquela mulher, em busca de crescimento, tanto dela, quanto seu, trazer críticas políticas para melhorar a organização política da coletividade. Precisamos aprender a ouvir umas as outras, e coletivas estão aqui não como um projeto pronto, mas um projeto que estará em andamento constante, pois as produções são constantes, logo o aprendizado também é, e isso não tem nada a ver com acolhimento, a ideia de acolhimento em espaços feministas também pede que as mulheres andem sempre pisando em ovos para não machucar os sentimentos das integrantes e isso faz com que mulheres, mais uma vez, baixem a voz para não serem vistas como insensíveis, e assim, cobrando que aquela mulher, uma vez já cobrada pela sociedade patriarcal, que haja de maneira dócil, compreensiva, mansa e apenas como uma boa ouvinte — mais uma vez colocando a mulher dentro de um papel passivo , incapaz de dialogar politicamente com aquelas mulheres que necessitam disso, já que trouxeram suas pessoalidades para dentro de um movimento político. Se o pessoal é político, todos os seres ali também são.

A Coletiva Sangra

Não é fácil participar de uma coletiva. Assim como não é fácil criar uma coletiva. Não é fácil exercer as atividades, fazer divisões de tarefas, não é fácil estar em um ambiente cheio de incertezas, com mulheres que você nunca viu, mas que conseguem se ver uma na outra. Não é fácil ser força de trabalho organizada, ainda mais quando se é mulher, pelos grandes fatos citados acima, mas, na verdade, não é fácil ser mulher, e é precisamente por isso que estamos aqui, juntando todos os “não é fácil” e tirando do mundo onírico todas as nossas vontades; construindo um mundo melhor para nós.

A Sangra Coletiva começou a partir de uma chamada que o Blog Feminismo Com Classe fez: “mulheres se organizem”, assim entendemos que cada mulher tem seus problemas de maneiras individuais, mas que se cruzam por sermos mulheres, claro que há de se levar em conta todas as particularidades, pois mulheres são diversas, há mulheres lésbicas, há mulheres negras, há mulheres indígenas, há mulheres brancas, há mulheres ricas, há mulheres pobres, há mulheres mães, há mulheres bissexuais, há mulheres deficientes, há mulheres amarelas e há mulheres héteros, e reconhecer todas essa diversidade é de extrema importância para o movimento feminista de mulheres, é importante que esses espaços contemplem todas elas, pois há um denominador comum que é ser mulher.

Cada mulher parte de um ponto diferente para se politizar, cada uma sabe o que busca quando resolve se organizar, mas é importante ter em mente que o que buscamos é a nossa libertação de uma sociedade patriarcal e capitalista. Pois todas essas mulheres são as maiores vítimas desses sistemas, principalmente do patriarcal. Logo, a classe de mulheres precisa entender a importância que é estar organizada com outras mulheres para unir forças, para trocarem experiências e para combater o inimigo juntas. Todas nós, em algum grau, somos vítimas desse sistema, nesse exato momento há menina sendo vítimas, você pode ter sido uma dela e dói, mas a dor ameniza quando podemos gritá-la juntas.

Sobreviventes sangram. Sobreviventes se curam juntas.

|historiadora.radical

--

--

Sangra Coletiva

Sobreviventes sangram. Sobreviventes se curam juntas. São Paulo — SP