A cultura da pedofilia; o poder dos homens
Aos homens é conferido o poder sobre os corpos das mulheres. A mulher é tida como propriedade privada de seu responsável masculino, seja ele pai, marido e afins. Dentro dessa mesma lógica capitalista de propriedades, cabe ao corpo das mulheres ser moldado de acordo com a norma patriarcal. A partir desse ciclo de dominação da classe feminina, entendemos a existência de um sistema. A articulação do patriarcado se dá pelo controle sistemático dos corpos femininos, e esse controle começa pela domesticação das mulheres enquanto ainda são meninas, ou seja, a partir do exercício da pedofilia. Mulheres são submetidas a um treinamento para servir à ordem masculina. Nesse sentido, existem ferramentas que tornam possível a manutenção deste sistema de inferiorização das mulheres. De forma direta, homens estupram meninas e mulheres, exercendo poder sobre nós. Já de forma indireta, a normalização da pedofilia se dá a partir da cultura da pedofilia.
Ela pode ser definida como uma série de rituais cujo objetivo é domesticar meninas e mulheres como parte da casta sexual feminina. Estes ritos podem funcionar como exigências sociais quanto à aparência das mulheres. A fim de assegurar que essas exigências seriam cumpridas, foi construído o que pode ser conceituado como padrão de beleza. A partir daí, se estabeleceu que as mulheres, se desejam ser consideradas indivíduos e seres dignos de respeito, devem se adequar ao que se espera delas. Criou-se a feminilidade enquanto ferramenta de opressão. Mulheres devem se depilar, pois é assim que identifica a classe feminina: pela ausência de pelos; na mesma perspectiva, existem cirurgias plásticas que diminuem o tamanho dos lábios vaginais, ou ainda cosméticos que prometem rejuvenescer a pele, deixando-a macia “como de bebê”. Todas essas intervenções estéticas promovem a infantilização dos corpos de mulheres adultas, os tornando agradáveis para uma ótica pedófila que considera excitante a ideia de interagir sexualmente com um corpo infantil, vulnerável.
Nesse mesmo sentido, a indústria pornográfica lucra diretamente com a cultura da pedofilia, tanto pela veiculação de pornografia infantil quanto pela produção de pornográfia com atrizes adultas que se parecem com crianças, seja na aparência, na forma de vestir e agir, ou no contexto. É muito comum que essas cenas reproduzam dinâmicas de poder que acontecem entre adultos e crianças na vida real, como professor e aluna. As buscas campeãs nos sites de pornografia são: incesto pai-filha, mãe-filha, ninfetas, novinhas, adolescentes. A visualização de tais imagens, ainda que sejam encenadas por adultos, mostra que existe uma naturalização do comportamento pedofílico e do desejo de estuprar corpos infantis. Assim, por ser tão lucrável para este setor de mercado, a indústria pornográfica incentiva abertamente a cultura da pedofilia.
Quando se levanta o debate da presença de cenas reais de pedofilia nos sites de pornografia, da existência de tráfico sexual extra e intrafamiliar, principalmente infantil, da pornografia de vingança e da exploração sexual nos filmes, vários indivíduos se ressentem dizendo que isso é “fake news” e moralismo. Em realidade, a cartada de atacar pessoas e organizações que são abertamente antipornografia, as chamando de moralistas e afins, é uma tática de silenciamento da voz das mulheres, que são o grupo mais articulado na crítica à indústria ponográfica, justamente por entenderem a conexão entre pedofilia e pornografia.
A cultura da pedofilia reproduzida e incentivada pela pornografia, de fato, dessensibiliza as pessoas. Indivíduos consumidores de ponografia regularmente apresentam dificuldade de se satisfazer apenas por imagens, o que ocasiona a criação de uma demanda voltada a cenas cada vez mais violentas, que muitas vezes são colocadas em prática.
A adultização e sexualização infantil são outra faceta da cultura da pedofilia: adolescentes e crianças, basicamente meninas, são induzidas a danças hipersexualizadas e expositivas de seus corpos, sendo incentivadas até mesmo em programas de TV e vídeos de internet a se expor e agir como adultas, isto é, a reproduzirem comportamentos considerados sexualmente apelativos.
Da mesma forma, mulheres são iniciadas ainda meninas na prostituição, por meio do aliciamento, que muitas vezes começa dentro do ambiente doméstico. A prostituição, assim como a pornografia, cria no imaginário social a falácia de que o direito ao corpo de uma mulher é passível de ser comprado. Mulheres são cooptadas a acreditar que se submeter aos homens pode ser uma escolha.
Segundo Andrea Dworkin, em sua palestra “Prostituição e Supremacia Masculina”, o incesto é o campo de treinamento da prostituição; conforme a autora, “Incesto é o campo de treinamento. O incesto é onde você envia a garota para aprender como fazer. Assim você, obviamente, não tem de enviá-la para lugar nenhum, ela já está lá e ela não tem nenhum outro lugar para ir. Ela é treinada. E o treino é específico e é importante: não ter limites reais ao seu próprio corpo; saber que ela é valiosa somente para o sexo; aprender sobre homens o que o ofensor, o ofensor sexual, lhe está ensinando. Mas mesmo isso não é o bastante, porque depois ela foge e ela está fora nas ruas e desabrigada. Para a maioria das mulheres, alguma versão de todos estes tipos de destituição precisa ocorrer.”
Outro ritual que submete mulheres ao patriarcado é a doutrinação para dentro da heterossexualidade. O regime masculinista determinou que sexualidade é um fator biológico e portanto inato. Mulheres são levadas a acreditar que nasceram heterosexuais, inevitavelmente disponíveis para encontros sexuais com homens. A lógica de que nascemos hétero propicia a pedófilos o argumento de que crianças são capazes de sentir prazer sexual; como se meninas pudessem se comportar de tal forma a instigar homens adultos a se sentirem excitados. Essa noção heteronormativa também abre espaço para políticas de estupro corretivo de lésbicas, que têm sua sexualidade podada antes mesmo de seu desenvolvimento.
É possível identificar um padrão nos vários métodos de colonização dos corpos de mulheres. Toda essa estrutura se apoia em práticas que são impostas a nós desde a infância. Práticas naturalizadas por uma ótica que considera a submissão feminina como um destino biológico, social, econômico. Mulheres crescem acreditando que devem ser um objeto para a satisfação masculina. Sem desejos, sem vontades próprias, desprovidas da capacidade de decidirem por si mesmas.
Cultura da pedofilia é a socialização feminina propriamente dita. Um eterno estado de subjugação. A classe dominante masculina determina como todo e qualquer aspecto de nossa vidas será construído. Não existe emancipação das mulheres sem a clareza de que o primeiro acesso ao corpo feminino acontece através da violação dos corpos de meninas. Que só é possível emancipar mulheres se voltarmos os nossos olhos para a violência cometida contra crianças. Essa negligência com a classe infantil também é sistemática, a sua raíz é patriarcal.
Sobreviventes sangram. Sobreviventes se curam juntas.
Anya | integrante da Sangra Coletiva